Brasil: pesquisadores ou biopiratas?
Acusações de biopirataria são cada vez mais freqüentes, através de representantes da biodiversidade brasileira flagrados em pacotes enviados ao exterior
A opinião pública reage com fúria, afinal há exemplos de produtos nossos patenteados no exterior, como foi o caso do cupuaçu em 2000. Protestos menos noticiados são os dos pesquisadores, que alegam que a Lei dos Crimes Ambientais (nº 9605/98) impõe enormes entraves à produção científica do Brasil.
Entre os casos recentes está o do pesquisador Carlos Jared, do Instituto Butantan em São Paulo. Em abril deste ano ele enviou a um colaborador alemão um pacote com 13 onicóforos, parentes distantes e pouco conhecidos das minhocas. Como conseqüência, o pesquisador foi multado e está sob investigação pela Polícia Federal pelo crime de biopirataria. O caso suscita uma discussão importante. A infração de Jared é real, pois ele não obteve a documentação necessária para o envio de material biológico. Mas o caso dele é comparável aos que enviam centenas de borboletas ou madeira-de-lei extraída ilegalmente da Amazônia, por exemplo?
Pesquisadores como Célio Haddad, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, e Miguel Trefaut Rodrigues, da Universidade de São Paulo (USP), acreditam que não. E declaram que aqueles que fazem tráfico ilegal de produtos vegetais e animais em grande escala não são detidos pelo Ibama ou pela Polícia Federal.
Os prejudicados são os cientistas, que trabalham em prol da preservação da natureza, não de sua extinção. Haddad enfatiza que os penalizados são os pesquisadores mais ativos, incluindo aí o próprio Jared, que recentemente publicou um artigo na revista científica Nature em colaboração com o mesmo alemão que receberia os onicóforos (veja notícia na ComCiência).
Uma das dificuldades que os biólogos enfrentam no cotidiano de seu trabalho é esbarrar com o fato de só ser permito coletar espécies que não estejam ameaçadas.
Segundo o especialista em anfíbios Célio Haddad, para identificar corretamente um sapo é necessário sacrificar o animal, examiná-lo no laboratório e só então checar a qual espécie pertence. Em muitos casos, conta, espécies ameaçadas só são reconhecidas como tal após medições e comparações com espécimes de museu. Para evitar as sanções da lei o pesquisador teria que se desfazer do espécime, em vez de estudá-lo. Além disso, de acordo com Haddad as leis que regulamentam coleta e trânsito de material biológico são tantas que ninguém sabe ao certo como fazer seu trabalho de forma legal. O resultado é, diz ele, que a maior parte dos biólogos comete crimes - seja porque a legislação é intransponível, ou porque os profissionais desconhecem aspectos do regulamento.
Miguel Trefaut Rodrigues concorda que Jared errou ao enviar os espécimes sem obter a devida licença. No entanto, ele ressalta que a troca de material biológico é extremamente comum em colaborações internacionais, e muitas vezes resulta em publicações conjuntas com maior abrangência do que se fossem realizadas por um único pesquisador. “A lei recente foi bolada por meia dúzia de pessoas sem conhecimento de biologia, e impôs um freio ao desenvolvimento científico e tecnológico do país”, lamenta Rodrigues. O biólogo exemplifica com sua demora de um mês em obter licença para mandar material para uma aluna que fazia pesquisa fora do país, e de seis meses para outra aluna conseguir autorização de levar material para seu próprio pós-doutorado no exterior. No caso de Jared, Rodrigues afirma que com esse atraso o material se teria estragado e o colaborador na Alemanha talvez não tivesse a disponibilidade para realizar o trabalho. Por regulamento do Butantan, somente a assessoria de imprensa do instituto pode manifestar-se sobre o caso. Seu argumento é de que houve um erro de natureza burocrática, não um crime ambiental.
Segundo o pesquisador da USP, a fase atual é maravilhosa para o avanço científico e tecnológico no Brasil em termos de recursos financeiros. “Mas tudo depende do estudo da diversidade biológica”. Para ele, a Lei dos Crimes Ambientais “não presta para nada, não vigia 99% das coisas”. Isso ocorre porque, apesar de recomendação do Ministério do Meio Ambiente, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) não incorporou sugestões feitas por pesquisadores. “No estrangeiro aqueles que estão na vanguarda do conhecimento são ouvidos”, compara.
O especialista em direito ambiental Hélcio Gil Santana afirma que numa democracia os cidadãos têm voz para influir no poder decisório. “O que deve ser levado ao Legislativo é o conhecimento da licitude, importância, legitimidade e nobreza da pesquisa científica realizada dentro da pesquisa tradicional, secular, que nada tem de ‘biopirataria’”, afirma. Santana lembra que durante a Idade Média, cientistas e estudiosos foram perseguidos e mal-compreendidos, o que os levou para as fogueiras e, conseqüentemente, ao “atraso em séculos no desenvolvimento da Humanidade”. “Hoje, é o nosso papel não deixarmos que a ignorância ou o desconhecimento continuem a prevalecer e as fogueiras de outrora sejam substituídas por legislação e atitudes governamentais draconianas, que transformarão em trevas o desenvolvimento científico nacional”. Rodrigues diz que não se trata de biopirataria: o problema é “biomesquinharia, bioparanóia e bioincompetência”.