Brasil: desafio é abarcar diversidade na construção da política nacional
A Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais finalmente passará a contar, dois anos depois de sua criação, com a participação de 15 representantes diretos dos grupos em questão
Geraizeiros, pomeranos, caiçaras, quebradeiras de coco babaçu, comunidades de fundo de pasto. Povos e comunidades tradicionais não aparecem na televisão, mas somam cerca de 5 milhões de pessoas distribuídas em quase 25% do território brasileiro. A posse da reformulada Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrida na semana passada, foi um marco na luta destas comunidades na luta por visibilidade e autonomia. A instância finalmente passará a contar, dois anos depois de sua criação, com a participação direta de 15 representantes dos próprios povos e comunidades.
O principal desafio da comissão revisitada será recuperar a dívida histórica do Estado para com estes segmentos populacionais e desenvolver uma política nacional que estabeleça eixos comuns sem deixar de abarcar a diversidade de demandas existentes.
Relegados à "invisibilidade", os povos e comunidades tradicionais sempre estiveram à margem das políticas universais e da ação do Estado. Lideranças contam que o tema enfrentou dificuldades para ganhar espaço. “Fora a questão indígena, outras populações não tinham o governo pensando suas demandas. Alguns setores no Ministério do Meio Ambiente se mostravam mais sensíveis, mas não houve preocupação de levar o tema para dentro da estrutura de governo”, declara Leide Aquino, coordenadora do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA).
Para Jecinaldo Cabral, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a comissão é uma sinalização positiva de promoção “da interlocução e do fortalecimento entre populações que não tem vez e voz no País”.
A complicada equação para inserir o recorte específico desses grupos nas políticas universalizantes do governo federal é central nesse processo. No caso de ações de transferência de renda, problemas na documentação, a falta de residência fixa (como no caso dos ciganos), e a localização longínqua são alguns dos obstáculos. Em resposta, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) está promovendo adaptações no cadastro para incorporar estas diversidades, contratou sistema especializado de acompanhamento do processo de inscrição destas famílias e incorporou o uso do endereço da prefeitura ou de associações para o recebimento do benefício visando resolver o problema de comunidades sem endereço fixo, como os ciganos. “Pouco tem sido feito, mas este pouco já é muito.
Tudo que é universal está sendo pensado para atender as especificidades das comunidades”, diz Aderval Costa Filho, diretor do Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais do MDS. Ainda no âmbito da pasta, foram implantados quase 100 Centros de Referência em Assistência Social (Cras) voltados a indígenas e quilombolas e o programa de atendimento emergencial com cestas básicas vem incorporando alimentos presentes nos hábitos alimentares das comunidades atendidas.
Os obstáculos são visíveis também no acesso a linhas de crédito, pois a exigência do registro do pedido por meio de pessoa jurídica exclui muitas comunidades que não estão organizadas em entidades registradas em cartório. Mesmo no caso dos projetos demonstrativos (PDAs), voltados para pequenas ações de manejo sustentável da floresta, há problemas por conta da burocracia para o acesso aos recursos do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). “A legislação não faz distinção entre uma compra de R$ 1 bilhão e de um fomento a um projeto de R$ 5 mil reais. No segundo caso, há exigência de pregão eletrônico, tomada de três orçamentos para compra, por exemplo, de um motor de popa”, comenta Teresa Moreira, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Diversidade
Para resolver problemas como estes e estabelecer um conjunto de políticas que garanta a sobrevivência e os direitos destas populações, a construção de uma política nacional de povos e comunidades tradicionais precisa resolver primeiramente uma questão conceitual em torno da própria definição dos segmentos atendidos.
Representantes do Poder Executivo federal consultaram especialistas no assunto e chegaram a um denominador comum que será posto em debate na reestruturada comissão nacional. A proposta entende povos e comunidades tradicionais como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Apesar das diferentes compreensões, Maria Adelina de Sousa Chagas, conhecida como "Dada", do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), acredita que a iniciativa de juntar as diferentes comunidades na comissão irá gerar um entendimento comum. “Haverá algumas dificuldades até de entendimento sobre o que são populações tradicionais, mas acho que não vai ser impossível chegar a algo comum. Tendo uma política que abranja toda esta população, acho que será possível o entendimento rápido”, sustenta. Já Jecinaldo Cabral, da Coiab, ressalta que há diferenças claras a serem respeitadas. “Não podemos confundir povos indígenas com comunidades tradicionais. Nós temos nossa luta histórica no Brasil, por isso não nos consideramos comunidades tradicionais. Quando se fala em povos, é preciso identificar aqueles que têm língua própria, território próprio, cultura própria”, defende.
As diferenças aparecem também na perspectiva de qual será o caráter da política nacional. O representante da Coiab defende a construção de plataformas públicas para as comunidades tradicionais, mas destaca que a pauta do movimento indígena segue com suas especificidades. “O que a gente não pode aceitar é que as nossas questões mais específicas sejam discutidas no âmbito geral”, coloca. O movimento indígena pede a criação de estruturas próprias como a Secretaria Especial dos Povos Indígenas e do Conselho Nacional de Política Indigenista.
A preocupação é que reivindicações como estas, resultado de histórico longo de disputa entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, retrocedam para ser incorporados a uma pauta geral das populações tradicionais.
Para Leide Aquino, do GTA, o trabalho na comissão não pode desconsiderar estas comunidades com menos histórico de luta. “Indígena e quilombolas têm sua política, mas há comunidades como as de fundo de pasto e pomeranos que estão agora no processo. Apesar de uma vivência e de uma forma de organização muito antiga, (esses grupos) muitas vezes não saíram do seu próprio estado”, comenta.
A aposta em torno de diferenças foi materializada na pauta comum elaborada no 1º Encontro Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, realizado ano passado em Luziânia (GO). No evento, que contou com a participação de mais de 100 representantes de 15 povos e comunidades, a regularização fundiária apareceu como reivindicação principal. Mas as especificidades ilustram o desafio de institucionalizar os pleitos em uma única política. Há grupos em que a área onde a atividade produtiva é desenvolvida é a mesma do território próprio e situações em que isso não acontece. É o caso das quebradeiras de coco babaçu, que reivindicam o livre acesso aos babaçuais sem, no entanto, exigir a titularidade da área onde estão localizados. Já os ciganos não pedem terras para sua instalação, mas reivindicam espaços territoriais em suas rotas de migração com equipamentos públicos como postos de saúde e estrutura sanitária.
Outra pauta é a resolução de conflitos decorrentes da sobreposição entre Unidades de Conservação e áreas habitadas por populações tradicionais. A figura da UC proíbe ações sobre o ambiente, como o corte de árvores, muitas vezes essencial para a atividade produtiva das comunidades. “Hoje o Ministério do Meio Ambiente se preocupa com esta questão. Representantes das comunidades tradicionais estão representados na comissão que está discutindo o Plano Nacional de Áreas Protegidas”, diz Jorg Zimmermann, um dos representantes do MMA na comissão recém-renovada.
Zimmermann vê a necessidade de uma maior articulação das ações do governo. “Os órgãos do governo têm instância, como no caso do MEC e do Ministério da Saúde, mas vêm atuando de forma descoordenada. A comissão não vai usurpar os papéis setoriais, mas colocar eles para conversar”, afirma. A expectativa do governo é realizar um intenso processo de debate para que a política nacional seja concluída e apresentada até o fim deste ano.