Brasil: seminário sobre Amazônia na Câmara faz recomendações sobre proteção da biodiversidade

O seminário Amazônia: Ameaças e Oportunidades. Reage Brasil! foi realizado nos dias 3 e 4/9, na Câmara dos Deputados, que contou com debates sobre biopirataria, interesses e conflitos da cooperação internacional na Amazônia, atividades ilícitas e vigilância nas fronteiras e caminhos para o desenvolvimento da região

Ao final do evento, os participantes elaboraram um documento com diversas sugestões à proteção da biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais, entregue à Casa Civil da Presidência da República, ao Ministério das Relações Exteriores, ao Ministério do Meio Ambiente, ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e ao Ministério de Ciência e Tecnologia (leia na íntegra abaixo).

O material solicita que seja aprovado uma legislação de acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados que leve em consideração as normas consuetudinárias das comunidades tradicionais no que concerne ao uso e exploração desses recursos; que seja criado um banco de dados disponível à OMPI - Organização Mundial de Propriedade Intelectual e a escritórios de marcas e patentes de todo o mundo, com denominações comuns brasileiras dadas a frutas, cultivares, bebidas e produtos alimentícios para impedir que se repitam casos como o registro da denominação popular cupuaçu por uma empresa japonesa.

Apresentar subsídios à posição brasileira, país membro da OMC, nas negociações da conferência que ocorre de 10 a 14/9, em Cancun, México, foi o principal foco do documento. Estarão em discussão neste encontro pontos relacionados à agricultura, ao meio ambiente, ao comércio, à propriedade intelectual, entre outros, que somam ao todo 21 temas relacionados à pauta da Rodada de Desenvolvimento de Doha, cujas discussões foram iniciadas em uma reunião realizada em 2001 e deverão ser negociadas até janeiro de 2005.

A questão dos conhecimentos tradicionais é tratada na OMC pelo Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS). Neste sentido, o texto sugere que o Brasil reivindique perante a comunidade internacional a alteração do quadro normativo vigente, para garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios advindos da utilização do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado.

O TRIPS não inclui entre os critérios para “matéria patenteável” a identificação da fonte do material genético, o conhecimento tradicional usado para obter esse material, a evidência de repartição justa e equitativa e de consentimento prévio informado para a exploração da patente.

o Inesc - Instituto de Estudos Socioeconômicos produziu o Dossiê Cancun, no qual aborda a estrutura da OMC, a reunião interministerial de Cancun e os principais temas de interesse do Brasil a serem discutidos.

Recomendações do Seminário Amazônia: Ameaças e Oportunidades. Reage Brasil! sobre apropriação dos recursos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados.

O Brasil é um dos países com maior diversidade biológica, uma vez que abriga, pelo menos, de 10% a 20% do número total de espécies do Planeta. Aqui ocorrem mais de 55 mil espécies vegetais, o que corresponde a 22% do total mundial. Possui, por exemplo, a maior riqueza de espécies de palmeiras (390 espécies) e de orquídeas (2.300 espécies). Diversas espécies de plantas de importância econômica mundial são originárias do Brasil. Nossa fauna também é bastante rica: aqui se encontram pelo menos 10% dos anfíbios e mamíferos e 17% das aves do mundo, e mais de 3 mil espécies de peixes de água doce, duas vezes mais que em qualquer outro país. Quanto aos insetos, as estimativas apontam para a existência em nosso território de 5 a 10 milhões de espécies, a maior parte ainda não descrita pela ciência. Talvez nunca se venha a conhecer com absoluta precisão toda a diversidade biológica brasileira encontrada nos biomas terrestres e nas águas continentais e marinhas, tal a sua extensão e complexidade.

Essa diversidade biológica possui um imenso valor, seja pela sua utilização direta na alimentação e diversos outros usos econômicos, seja por meio dos benefícios proporcionados pelos ecossistemas na manutenção do clima, na preservação dos recursos hídricos e dos solos etc. Destaca-se, sobretudo, o potencial para a biotecnologia, uma das vertentes do desenvolvimento mundial nos próximos anos. Nas milhares de espécies biológicas que possuímos, encontram-se substâncias químicas com propriedades anestésicas, relaxantes musculares, antialérgicas e antiinflamatórias, e tantas outras.

Toda essa riqueza, contudo, não se tem traduzido em bem-estar para o nosso povo. A biodiversidade, bem de valor inquestionável para a indústria e imprescindível para a sobrevivência do homem, não é, na prática, objeto de qualquer contraprestação econômica por parte das grandes corporações, que geram novas tecnologias e bens de comércio a partir dos conhecimentos tradicionais de comunidades locais e de recursos genéticos oriundos de países megadiversos, como o nosso. A bioprospecção e a transferência, de forma ilegal, de recursos vivos e a apropriação de conhecimentos tradicionais pela indústria dos países desenvolvidos, via direitos de propriedade intelectual, caracteriza o fenômeno da biopirataria. Embora o conceito de biopirataria seja de aplicação muito recente, sua prática vem ocorrendo há séculos.

Para tentar solucionar este problema, foi assinada, durante a Cúpula da Terra, em 1992, a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB). A CDB tem como objetivos centrais a utilização sustentável e a conservação da diversidade biológica, bem como a repartição justa e eqüitativa dos benefícios oriundos da exploração comercial ou não dos recursos biológicos e dos conhecimentos tradicionais associados a esses recursos. A CDB, contrariando os interesses de muitas nações desenvolvidas, reconhece a soberania dos Estados sobre os recursos biológicos localizados dentro de suas fronteiras. A partir de então, a diversidade biológica deixou de ser considerada patrimônio comum da humanidade e passou a ser patrimônio sujeito à soberania dos Estados.

Pouco tempo depois, em 1994, durante a Rodada Uruguai do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), foram celebrados inúmeros acordos internacionais sobre comércio, incluindo o Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs). Pela primeira vez na história, a propriedade intelectual foi introduzida na agenda de negociações de uma rodada do GATT, como tema de interesse comercial internacional. Os Estados Unidos, a Europa e o Japão argumentaram que a ausência de proteção da propriedade intelectual nos países em desenvolvimento era uma barreira comercial injusta, e por isso, deveria ser submetida a medidas de represália. Os EUA ainda sustentaram que as matérias protegidas sob as leis de propriedade intelectual deveriam ser definidas sem exclusões, a fim de incluir produtos e processos biotecnológicos.

Se na Convenção sobre Diversidade Biológica há alguma margem para se pleitear proteção aos conhecimentos tradicionais de comunidades agrícolas, indígenas, extrativistas e quilombolas, o mesmo não pode ser dito quanto ao TRIPs. Todos os membros da Organização Mundial do Comércio devem adotar legislação de propriedade intelectual, em consonância com o disposto no TRIPs. Especificamente, todos os signatários devem: proporcionar cobertura de patentes para todos os microorganismos; e desenvolver alguma espécie de legislação de propriedade intelectual que inclua as variedades vegetais.

Uma vez que o TRIPs ignora completamente as disposições da Convenção sobre Diversidade Biológica relativas a repartição de benefícios (art. 27.3(b)), pode-se sustentar que os dois acordos estão em conflito. Existem contradições muito claras em três áreas dos acordos: seus objetivos, os sistemas legais estabelecidos, e as obrigações jurídicas impostas. Basicamente, a Convenção sobre Diversidade Biológica visa a impedir a biopirataria, enquanto o TRIPs, ao permitir a concessão pura e simples de monopólios comerciais sobre elementos da biodiversidade, fomenta tal prática.

O Brasil, como Estado-membro da OMC, aprovou em 1996 e em 1997, respectivamente, sua nova Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996), passando a proceder ao patenteamento de microorganismos geneticamente modificados, e a Lei de Cultivares (Lei nº 9.456, de 28 de abril de 1997), protegendo, por meio de certificados de melhorista, as obtenções vegetais da indústria da biotecnologia. No entanto, o órgão responsável pela avaliação e concessão de patentes no País - o Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI -está completamente desaparelhado para o exercício das suas funções. No campo da regulamentação da proteção dos conhecimentos tradicionais associados e do acesso aos recursos genéticos, todavia, ainda há muito a fazer, uma vez que o assunto é tratado unicamente por Medida Provisória (MP 2.186, de 23 de agosto de 2001).

Para evitar que continuem a ocorrer prejuízos à conservação e à exploração sustentável do nosso patrimônio genético e, ao mesmo tempo, para fomentar a manutenção da ciência e tecnologia de nossas comunidades tradicionais indígenas e agrícolas, que, desde tempos imemoriais, vêm curando doenças, alimentando populações e desenvolvendo tecnologias, de forma aberta, apresentamos algumas sugestões que, se plenamente adotadas, podem coibir a biopirataria do nosso patrimônio.

No âmbito interno, são necessárias medidas com vistas a:

- aprovação de legislação de acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados, que leve em consideração as normas consuetudinárias das comunidades tradicionais no que concerne ao uso e exploração destes conhecimentos, reconhecendo direito e poder às comunidades sobre seus conhecimentos e terras onde vivem, mantêm e reproduzem tais conhecimentos;

- alteração da legislação de proteção à propriedade industrial, de forma a exigir que o solicitante da patente aponte, no descritivo da invenção, o local de origem do recurso genético, a comunidade tradicional que transferiu determinado conhecimento que permeia a invenção, quando for o caso, bem como cópia do acordo que regulou o acesso ao recurso ou conhecimento (consentimento prévio fundamentado) e a repartição de benefícios oriundos do acesso; neste caso, não se criaria um quarto requisito para a concessão da patente (novidade, inventividade e aplicação comercial) - o que infringiria as obrigações do Acordo TRIPs -, mas o monopólio que decorre da patente apenas teria eficácia se o solicitante da patente disponibilizasse tais informações;

- criação de um banco de dados, disponível à Organização Mundial da Propriedade Intelectual e aos escritórios de marcas e patentes de todo o mundo, com denominações comuns brasileiras dadas a frutas, cultivares, bebidas e produtos alimentícios, de forma a impedir que casos como o registro da denominação popular "cupuaçu" como marca comercial nos EUA, Europa e Japão se repitam;

- formulação e implementação de uma política efetiva de ciência e tecnologia para a Amazônia, dotando a Região dos recursos materiais e humanos necessários para um amplo programa de avaliação e utilização sustentável da biodiversidade amazônica; em particular, instalar e operar o Centro de Biotecnologia da Amazônia;

- reaparelhamento do Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI;

- inclusão, no PPA, de programas específicos para a Amazônia, que reflitam uma agenda articulada intersetorialmente sobre o tema.

No entanto, para que os resultados esperados sejam, de fato, alcançados, é necessário alterar os acordos internacionais que regulam a propriedade intelectual e, para tanto, deve-se elaborar estratégia semelhante à traçada, com sucesso, para o caso do conflito diplomático Brasil versus EUA no campo dos medicamentos. A primeira e quiçá a melhor oportunidade ocorrerá na próxima semana, por ocasião da Quinta Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio, onde se continuará a discutir a implementação da Agenda de Doha.

Nessa reunião, o Brasil deve manifestar seu repúdio à forma como os direitos de patente vêm sendo utilizados para usurpar outros direitos e reivindicar perante a comunidade internacional a alteração do quadro normativo vigente, de forma a garantir a repartição justa dos benefícios advindos da utilização do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado a esse patrimônio. (ISA - Instituto Socioambiental)

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