A "Reforma Agrária de mercado" do Banco Mundial no Brasil
Desde o início dos anos 1990, observa-se uma ofensiva do Banco Mundial (BIRD) direcionada a estimular a criação, pelos governos nacionais, de políticas agrárias ajustadas aos parâmetros neoliberais, especialmente na América Latina, na Ásia e no antigo bloco socialista. Basicamente, a agenda agrária do BIRD consiste em quatro grandes linhas de ação: a) estímulo a relações de arrendamento, como prioridade máxima; b) estímulo a relações de compra e venda de terras; c) privatização e individualização de direitos de propriedade em fazendas coletivas ou estatais; d) privatização de terras públicas e comunais
Para implementá-las, o BIRD vem estimulando a mudança das legislações agrárias e aumentando a liberação de empréstimos para os governos nacionais, criando as condições legais e administrativas para a livre transação mercantil da terra e a atração de capital privado para o campo.
Este artigo procura analisar brevemente a implantação do modelo de reforma agrária de mercado no Brasil, um componente importante da estratégia do BIRD de maximizar as relações de compra e venda como meio preferencial de acesso à terra pelo campesinato pobre. Iniciado, sob diferentes formatos, em 1994, na África do Sul e na Colômbia e, em 1997, no Brasil e na Guatemala, tal modelo inspirou a criação de programas dessa natureza em Honduras, México, Malaui e Zimbábue, bem como reforçou politicamente programas já existentes em El Salvador e nas Filipinas.
1. A reforma agrária de mercado e a disputa sobre o papel do Estado
Para legitimar o MRAM, o BIRD efetuou, em nível internacional, duas operações simultâneas: de um lado, procedeu a uma crítica radical ao que ele mesmo denominou de reforma agrária “tradicional” ou “conduzida pelo Estado”, baseada no instrumento da desapropriação de propriedades rurais que não cumprem com a sua função social. De outro, trabalhou para que este modelo fosse aceito, política e conceitualmente, como uma modalidade de reforma agrária redistributiva. Assim, o BIRD voltou a enfatizar a necessidade de uma reforma agrária para diminuir a pobreza rural em sociedades altamente desiguais, mas passou a negar a atualidade da ação desapropriacionista e redistributiva do Estado. Este modelo foi ungido no contexto ultra-liberal do pós-Guerra Fria como a ação governamental adequada aos países do Sul, marcados por grave problema agrário e fortes tensões sociais no campo, agudizadas pelos efeitos socialmente regressivos provocados pelas políticas de ajuste estrutural.
Este modelo não é uma modalidade de reforma agrária redistributiva, pois tem como princípio a compra e venda voluntária de terra entre agentes privados, acrescida de uma parcela variável de subsídio para investimentos sócio-produtivos. Já a reforma agrária redistributiva consiste em uma ação do Estado que, num curto espaço de tempo, redistribui uma quantidade significativa de terras privadas apropriadas por uma classe de grandes proprietários. Seu objetivo é democratizar a estrutura agrária e promover o desenvolvimento nacional, o que pressupõe transformar as relações de poder econômico e político responsáveis pela reprodução da concentração fundiária. Enquanto política redistributiva, implica, antes de tudo, a desapropriação “punitiva” (isto é, mediante indenização abaixo do preço de mercado) de terras privadas que não cumprem a sua função social. Como mostra a experiência histórica e vem sendo insistentemente reiterado pelos movimentos camponeses contemporâneos de todo mundo, ela precisa vir acompanhada de um conjunto de políticas complementares na área de infra-estrutura, educação, saúde e transporte, bem como de uma política agrícola que favoreça o campesinato, baseada na oferta pública de crédito, assistência técnica e acesso a mercados. Em outras palavras, a reforma agrária tem como objetivo central redistribuir terra e garantir as condições de reprodução social do campesinato, atacando as relações de poder na sociedade que privilegiam os grandes proprietários, que podem ser, inclusive, grandes empresas e bancos (nacionais ou estrangeiros). Por tudo isso, a reforma agrária exige o fortalecimento do papel do Estado na provisão de bens e serviços públicos essenciais à melhoria das condições de vida dos camponeses assentados e ao bom desempenho econômico do setor reformado.
Não é difícil perceber que os pressupostos do modelo do BIRD são distintos dos da reforma agrária redistributiva. No primeiro caso, a terra é vista como um mero fator de produção, um bem puramente econômico, uma commodity, transacionável como qualquer outra mercadoria. No segundo caso, considera-se que a terra tem um caráter multidimensional (político, econômico e cultural), razão pela qual o controle e os direitos de propriedade sobre ela expressam, antes de mais nada, relações de poder entre grupos e classes sociais.
A crítica do BIRD ao chamado modelo “desapropriacionista” se faz de maneira abstrata, homogeneizadora e universalista, deslocada da análise empírica dos conflitos sociais que definiram natureza, grau, extensão, ritmo, direção e mesmo refluxo das políticas de reforma agrária em vários países, sempre muito heterogêneas entre si. Exemplo desse caráter caricatural é a repetição desse mesmo discurso para explicar o caso brasileiro, considerando “esgotado” ou “falido” uma reforma agrária que, a rigor, jamais foi levada adiante em escala substantiva. Além disso, os programas do BIRD começaram a ser implantados apenas três anos após a regulamentação dos dispositivos constitucionais relacionados à reforma agrária. Evidentemente, fazer a crítica à crítica do BIRD não implica desconsiderar que as políticas de reforma agrária padeceram - e ainda padecem, nos poucos países onde estão sendo precariamente implementadas, como no Brasil - de enormes deficiências, provocadas por uma série de razões, dentre as quais, de um lado, o veto permanente das classes dominantes à qualquer política de natureza redistributiva e, de outro, a desarticulação neoliberal do aparato público responsável por garantir as condições necessárias ao desenvolvimento econômico e social dos assentamentos rurais. Porém, o que deve ficar claro é que a crítica do BIRD constrói uma caricatura (a tal “reforma agrária conduzida pelo Estado”) para disputar política e ideologicamente qual deve ser o papel do Estado em sociedades marcadas por grave problema agrário na atual fase do capitalismo. Para o BIRD, qualquer política verdadeiramente redistributiva - i.e., que atinja o estoque de riqueza acumulado por uma minoria e modifique as relações de poder entre os grupos e classes sociais - deve ser rejeitada.
2. As “afinidades eletivas” entre o Banco Mundial e o governo Cardoso
O programa do PSDB - partido hegemônico no governo FHC - reconhecia a necessidade de mudanças em favor da desconcentração da propriedade da terra e do fortalecimento da agricultura familiar. No entanto, a “reforma agrária” era pensada sem qualquer relação com a transformação da estrutura fundiária brasileira, a democratização do poder político, o crescimento da produção agrícola e a mudança do modelo de desenvolvimento econômico, entendida como ampliação e fortalecimento do mercado interno de massas e redistribuição substantiva de renda e riqueza. Tratava-se, tão-somente, da realização pontual e dispersa de assentamentos de trabalhadores sem terra a fim de “aliviar” a pobreza rural. Não por acaso, o programa de reforma agrária vinculava-se, de início, ao famigerado Comunidade Solidária, de caráter notoriamente assistencialista.
Apesar das orientações minimalistas do governo FHC, o tema da reforma agrária retornou à agenda política nacional pela confluência de um conjunto de pressões e acontecimentos desencadeados no biênio 1996-1997. Destes, foram fundamentais: a) a enorme repercussão internacional que tiveram os massacres de Corumbiara (RO) e Eldorado dos Carajás (PA), os quais geraram uma onda de protestos contra a violência e a impunidade e em favor da luta por reforma agrária no Brasil; b) o aumento em praticamente todo o país das ocupações de terra organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, em alguns estados, por determinados sindicatos e federações ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); c) a tensão social crescente no Pontal do Paranapanema (SP), em virtude do aumento das ocupações de terra e da violência paramilitar praticada por latifundiários; d) a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, organizada pelo MST, que chegou em Brasília em abril de 1997 e acabou galvanizando a insatisfação popular contra as políticas liberais, transformando-se na primeira manifestação popular massiva contra o governo FHC. Em resposta à forte repercussão do massacre de Eldorado dos Carajás, o governo federal criou, ainda em 1996, o Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária (MEPF). Seu objetivo era retomar as iniciativas políticas capazes de imprimir direção ao tratamento das tensões no campo e minimizar a ascensão política e a gravitação social do MST. O governo FHC iniciou, então, um conjunto de ações relacionadas à reforma agrária e aos conflitos no campo. Relativamente dispersas no início, tais ações foram ganhando coerência ao longo do triênio 1997-1999. Foram elas: a) baratear e acelerar as desapropriações para fins de reforma agrária; b) reprimir as ocupações de terra, impedindo que propriedades ocupadas fossem desapropriadas; c) criminalizar as ocupações via grandes meios de comunicação, criando uma imagem negativa dos “sem terra” e de sua forma de luta social; d) implementar o processo de descentralização político-administrativa da reforma agrária, o que implicava em desfederalizar a execução da política fundiária; e) introduzir o modelo de reforma agrária de mercado do BIRD no Brasil.
Desde o início do governo FHC, o BIRD preconizava a dinamização dos mercados fundiários como mecanismo mais “eficiente” para atingir dois objetivos simultâneos: de um lado, distribuir terra a pequenos agricultores e trabalhadores sem terra; de outro, aliviar pontual e seletivamente a pobreza rural, agudizada pelas políticas de ajuste estrutural. Na ótica do BIRD, o modelo de mercado deveria ser introduzido como o “braço agrário” de políticas compensatórias já em curso no meio rural. Politicamente, o objetivo de ambos (governo federal e BIRD) era diminuir a pressão provocada pelas ocupações de terra e a ascensão política dos movimentos sociais, introduzindo um mecanismo de mercado que pudesse disputar, pela base, a adesão de trabalhadores sem terra. Para ambos, a introdução de programas orientados pelo mercado poderia desligar a conexão entre ocupações e desapropriações, recolocando em novo patamar o tratamento das questões fundiárias.
Assim, a ação governamental não mais estaria a reboque de fatos políticos provocados pela mobilização dos movimentos sociais, limitando-se a intermediar relações de compra e venda entre trabalhadores e proprietários de terra. A rapidez e a escala desse processo foram impressionantes, pois em agosto de 1996 o projeto São José (ou “Reforma Agrária Solidária”) foi criado no Ceará e o primeiro financiamento para compra de terras foi liberado em fevereiro de 1997. Em abril do mesmo ano foi criado o Cédula da Terra, com início efetivo no mês de julho. Em fevereiro de 1997, foi protocolado no Senado um projeto de lei para a criação do Fundo de Terras/Banco da Terra, o que se consumaria em fevereiro de 1998. Note-se que àquela altura o Cédula da Terra mal havia começado. Sem qualquer tipo de avaliação sobre as experiências anteriores e contra a posição das principais organizações de representação de trabalhadores rurais, o Executivo federal jogou todo seu peso político na criação do Banco da Terra pelo Congresso Nacional.
Em outras palavras, partindo de uma experiência diminuta no estado do Ceará até a mobilização do “rolo compressor” do governo federal no Congresso Nacional, em apenas um ano e seis meses o Brasil conheceu três projetos direcionados para o mesmo fim: instituir o financiamento público à compra privada de terras como mecanismo alternativo à reforma agrária, de modo a aliviar as tensões sociais no campo e devolver o protagonismo político ao governo na condução da política agrária.
Foi contra esta tentativa de substituição da política de reforma agrária que CONTAG, MST e uma enorme gama de organizações sociais, articuladas no Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, se posicionaram durante os anos de 1997 e 1999. Tais programas eram vistos como extensão da agenda neoliberal ao campo brasileiro. Naquela conjuntura, a crítica a tais programas servia como referência a uma crítica mais geral às ações do governo federal. De modo inovador, o Fórum encaminhou em outubro de 1998 uma solicitação ao Painel de Inspeção do BIRD, sustentando que o Cédula da Terra: a) não estava sendo implementado como projeto-piloto, na medida em que não havia sido sequer avaliado e o BIRD já assumira o compromisso com a sua ampliação, consumada na criação do Banco da Terra; b) estava sendo executado como alternativa, e não como complemento à desapropriação, revogando, na prática, o papel do Estado em garantir o cumprimento da função social da propriedade, prevista na Constituição Federal de 1988; c) havia sido dirigido para estados com grande estoque de terras desapropriáveis, possibilitando que terras mantidas como reserva de valor durante décadas fossem remuneradas à vista a preço de mercado; d) aquecia o mercado fundiário, contribuindo para a elevação do preço da terra, revertendo a tendência de queda relativa até então observada; e) as condições de financiamento eram proibitivas, o que geraria inadimplência e perda da terra; f) por essa razão, não atendia ao objetivo de “combate à pobreza rural” preconizado pelo próprio BIRD; g) não se tratava de um processo transparente e participativo, na medida em que não havia publicização de informações aos beneficiários e às suas organizações de representação, nem tampouco mecanismos de consulta e participação social; h) permitia a reprodução de relações tradicionais de dominação e patronagem no meio rural, na medida em que a negociação em torno do preço da terra, longe de ser uma transação mercantil entre iguais, seria controlada pelos agentes dominantes no plano local (proprietários e políticos).
O Fórum realizou uma série de ações no Brasil e, principalmente, no exterior, pressionando governos europeus a apoiarem a iniciativa brasileira junto ao Painel de Inspeção. Tais iniciativas foram: a) denúncia ao Ministério Público Federal sobre suspeitas de superfaturamento e corrupção; b) envio de documentos para o BIRD, denunciando o descumprimento de suas próprias normas; c) lobby junto aos governos dos Estados Unidos e da Europa denunciando as irregularidades e a finalidade política do Cédula da Terra, para que pressionassem o BIRD e apoiassem o pedido de inspeção.
Resumindo, a solicitação ao Painel foi negada, mas o Fórum fez uma segunda tentativa, dessa vez amparado por farta documentação, liberada pelo governo brasileiro tão-somente porque dois parlamentares haviam assinado pedido oficial de informações. Novamente, o Painel não recomendou a investigação sobre o Cédula, alegando que as motivações do Fórum eram de ordem “filosófica” e que este não havia seguido os “procedimentos” normais, ou seja, tentar negociar com o BIRD e governo antes de solicitar inspeção.
Os embates em torno do Painel de Inspeção tiveram muitos desdobramentos, cujos efeitos se prolongam até os diais atuais. Um primeiro foi ter projetado internacionalmente o caso brasileiro como um marco de referência crítica para todo espectro de forças políticas contrário às políticas do BIRD, tanto aquelas voltadas para o setor agrário, como à própria agenda mais ampla de reformas liberalizantes. A constituição dessa referência, por sua vez, contribuiu para uma maior articulação entre movimentos e organizações sociais de todo mundo. A partir de então, diversos encontros em nível internacional foram realizados com o objetivo de intercambiar experiências, fortalecer a articulação e a unidade política entre agentes sociais tão diversos e unificar o discurso e a prática contrários às ações do BIRD.
Um segundo desdobramento foi ter bloqueado por quase dois anos o empréstimo que o BIRD faria ao governo federal para financiar o Banco da Terra em todo país. Foi a pressão internacional sobre o Painel de Inspeção que tencionou a negociação do novo empréstimo do BIRD ao governo brasileiro, a qual encontrava-se em estágio avançado em dezembro de 1998. Criou-se uma situação de impasse, na medida em que a implantação em larga escala do MRAM no Brasil não encontrava o necessário respaldo político. O fato era que as principais organizações nacionais de representação de trabalhadores rurais (CONTAG e MST) posicionavam-se em bloco contra o novo modelo através do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Essa resistência colocava em cheque a seqüência de uma experiência propagandeada pelo BIRD como a mais exitosa em nível internacional, rompendo com o discurso da participação da sociedade civil em seus projetos.
Tal unidade, entretanto, foi rompida em 2000, quando a CONTAG incluiu na pauta do Grito da Terra-Brasil a demanda por um programa de crédito fundiário. Essa demanda abriu a possibilidade de negociação com o governo FHC e o BIRD, o qual desviou o seu apoio ao Banco da Terra para o “crédito fundiário”, um programa muito semelhante aos que já vinham sendo implementados. Com este apoio, a diretoria do BIRD aprovou em 2001 o pedido de empréstimo de aproximadamente EUR 436,4 milhões para implementar o crédito fundiário em 14 estados. Assim, ampliou-se sensivelmente a experiência do Cédula da Terra, ainda em vigência, o qual abarcava 5 estados, a partir de um empréstimo de US$ 90 milhões.
3. Continuidades e descontinuidades no Governo Lula
A experiência brasileira com os programas de reforma agrária de mercado é a mais abrangente em nível internacional, tanto em número de famílias financiadas como em volume de recursos gastos. Nenhum outro país contratou tal volume de empréstimos junto ao BIRD para financiar a compra e venda de terras. Durante o governo Cardoso, foram implementados quatro programas, sendo que o São José foi uma experiência pequena, limitada ao estado do Ceará. Este projeto contemplou em torno de 800 famílias no ano de 1997. Já o Cédula da Terra, apesar de ser também um projeto piloto, foi mais abrangente, pois abrangeu quase 16 mil famílias de cinco Estados e foi concluído oficialmente em dezembro de 2002. O caso do Banco da Terra/Fundo de Terras é diferente, pois não se resume a um programa governamental. Sua natureza institucional é a de um fundo de terras criado pelo Congresso Nacional. Constitui-se, por isso, em um instrumento de caráter permanente, por meio do qual o financiamento para compra e venda de terras ao campesinato pobre opera como política de Estado.
O governo Lula, redefinindo alguns parâmetros, incorporou o Fundo de Terras à sua política fundiária, fortalecendo-o como fonte da contrapartida nacional aos empréstimos do BIRD para a implantação da reforma agrária de mercado.
O Banco da Terra foi renomeado como “Consolidação da Agricultura Familiar” (CAF) em outubro de 2003. O nome mudou, os itens financiáveis foram ampliados e as condições de financiamento foram revistas, mas a lógica permanece a mesma do “antigo” Banco da Terra. Oficialmente, sua fonte de financiamento é exclusivamente nacional. Tal como no governo anterior, sua fonte de financiamento é nacional, sem recursos do BIRD. Entretanto, essa situação pode ser provisória, já que o Banco vem revendo suas próprias normas no tocante à proibição de empréstimos para compra de terras aos países clientes, e já autorizou em 2002 esse tipo de operação para projetos desenvolvidos no Malaui, na África. Por outro lado, a unificação dos três programas sob o abrigo do novo CAF não permite distinguir claramente qual é a fonte dos financiamentos para cada um deles. O Ministério do Desenvolvimento Agrário vem firmando, desde o final de 2003, termos de cooperação com governos estaduais a fim de implantar o CAF no maior número possível de estados brasileiros.
O Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural está sendo executado pelo governo Lula e sua conclusão foi adiada para 2006. A diretoria do BIRD já aprovou mais duas outras fases e, se efetivamente executadas, o programa será concluído em 2012, financiando a compra de terras por cerca de 250 mil famílias.
Em novembro de 2003 foi criado o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), responsável pela gestão do Crédito Fundiário, do Fundo de Terras e de uma nova linha de crédito para compra de terras dirigida ao público jovem, especialmente filhos de pequenos agricultores da região Sul do país. Subordinado ao MDA, o PNCF tem como meta financiar a compra de terras por 130 mil famílias até 2006. Considerando que a meta do programa de reforma agrária (desapropriações) é assentar 400 mil famílias no mesmo período, conclui-se que esses programas de mercado correspondem a mais de 30% das metas das metas agrárias do MDA. Nos termos em que vem sendo reestruturado e negociado com o Ministério da Fazenda, o Fundo de Terras deverá operar como um instrumento de longo prazo - as projeções atuais estimam trinta anos de ação ininterrupta. Até 2010, o Fundo deverá receber anualmente cerca de R$ 330 milhões do Tesouro Nacional e, a partir de 2012, já capitalizado pela aplicação no mercado financeiro e pelo pagamento das prestações dos mutuários, poderá devolver ao Tesouro parte dos recursos aportados.
O redesenho do Fundo de Terras sinaliza a tentativa de consolidação de uma mudança iniciada pelo governo anterior no aparato estatal dirigido à questão fundiária. Almeja aperfeiçoar e fortalecer um instrumento de caráter permanente voltado ao financiamento público à compra de terras por “agentes privados” (trabalhadores rurais sem terra, pequenos agricultores e fazendeiros), potencialmente em todo território nacional.
Entretanto, em que pesem as continuidades, há duas descontinuidades relevantes em relação ao quadro de disputas que marcou o governo anterior. A primeira é que nenhuma entidade de representação rural (patronal ou de trabalhadores) vê no governo Lula a intenção de substituir a reforma agrária pela política de reforma agrária de mercado, apesar das metas do PNCF serem elevadíssimas e o mesmo estar sendo estendido virtualmente a todo país. A segunda diz respeito à legitimação dada por organizações sindicais nacionais aos programas orientados pelo modelo de reforma agrária de mercado do BIRD. Desde 2000, a luta contra este modelo não mais aglutina o conjunto de entidades de representação do campesinato pobre contra as políticas neoliberais. Mesmo aqueles movimentos que são contrários (como o MST e os integrantes da Via Campesina), relegaram esse embate a um plano secundário, por entenderem que a contradição principal no meio rural brasileiro hoje está entre o grande “agronegócio” exportador e os trabalhadores rurais sem terra, e não entre desapropriação e crédito fundiário.
Conclusão
As posições políticas sobre o mérito do PNCF se desenharão não apenas em função do seu desempenho operacional, mas sim, fundamentalmente, dos resultados do programa de reforma agrária do governo Lula, até agora muito aquém do esperado.
Ocorre que os dados preliminares sobre a execução do PNCF também estão muito abaixo das expectativas do próprio governo federal e do BIRD. Em 2004 o programa alcançou apenas 9.186 famílias, enquanto a meta previa 37 mil famílias. Vários fatores respondem por este desempenho, como, por exemplo, os cortes sistemáticos no orçamento do MDA, a lentidão própria do arranjo tripartite de implementação do programa e, sobretudo, elevação do preço da terra em função da dinamização do grande “agronegócio”, especialmente após 1999. Dentro desse quadro de baixíssima execução, se o PNCF avançar relativamente mais do que o programa de reforma agrária é provável que se estabeleça uma tensão política cada vez mais forte entre as duas “concepções”.
No que diz respeito ao BIRD, observa-se uma posição mais flexível em relação à replicabilidade do modelo de mercado nos países marcados por grave problema agrário, derivada do fracasso rotundo das experiências levadas a cabo na África do Sul, Guatemala e Colômbia. A rigor, a prioridade atual da política agrária do BIRD não consiste mais na implementação de programas de compra e venda, mas no estímulo a relações de arrendamento de terras.
Todavia, o modelo de mercado não foi descartado. Além do Brasil, esse tipo de programa vem ganhando impulso na Ásia e começa a ser implementado no México. Lá, o BIRD pretende financiar um projeto direcionado a jovens agricultores no mesmo formato da linha de crédito fundiário criada pelo governo Lula, com um empréstimo de U$ 100 milhões prometidos para julho de 2005.
Por outro lado, o BIRD prossegue com o mesmo “deslizamento semântico” que caracteriza toda a construção da proposta de mercado. Com isso, seu objetivo é rebaixar politicamente da própria definição de reforma agrária, alargando-a de tal maneira que até mesmo programas de financiamento à compra e venda de terras passam a ser considerados “instrumentos” ou “modalidades” de reforma agrária. Trata-se de uma tentativa de redefinição do sentido e do significado da reforma agrária no mundo contemporâneo, em disputa direta com a visão de mundo e a plataforma política dos movimentos sociais camponeses. Possivelmente, o desdobramento da experiência brasileira jogará papel central no futuro da reforma agrária de mercado como proposta aplicável aos países do Sul. De todo modo, ainda é cedo para afirmar se esses programas vão ser plenamente executados no Brasil — dando origem a um novo arranjo de políticas agrárias de caráter “misto” (desapropriação e compra e venda) —, ou se vão redundar em fracasso e desmoralização desse tipo de proposta.
1 Texto publicado na revista Proposta, dezembro/fevereiro, nº 107, ano 30. Endereço: www.fase.org.br * Sergio Sauer é Doutor em Sociologia e mestre em Filosofia da Religião. É assessor da senadora Heloísa Helena (PSOL/AL) e pesquisador associado da Universidade de Brasília (UnB). João Márcio Mendes Pereira é Historiador, doutorando em História pela UFF, mestre em Desenvolvimento e Agricultura pelo CPDAUFRRJ.
Fonte: MPA Brasil