Pescadores e quilombolas lançam campanha “Nem um Poço a Mais!”
Entre os dias 26 e 28 de junho, cerca de 60 representantes de comunidades quilombolas e de pescadores artesanais da Bahia, Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro, realizaram um encontro em Vila Velha (ES) para discutir ações frente aos crescentes impactos da expansão petroleira sobre territórios tradicionais terrestres e marinhos. O encontro foi realizado com apoio da ONG Fase, que no Espirito Santo atua na defesa de comunidades afetadas pelas atividades petroleiras e pelo plantio de eucaliptais.
De acordo com os participantes do evento, a complexificação dos investimentos em estruturas de grande porte ligados ao pré-sal, como poços, dutos, portos e estaleiros – e, no rastro destes, os projetos de mineração, logística, energia, etc -, tem gerado um acirramento sem precedentes dos conflitos nos territórios pesqueiros e quilombolas costeiros.
No estado do Espírito Santo, a Petrobras iniciou a exploração de petróleo em 1973. Até 2011, eram 380 poços abertos, número que cresce a cada ano (apenas em 2014, a empresa descobriu 14 novos pontos de potencial exploração, dos quais seis são em terra – onshore – e oito no mar – offshore), localizados em sua maioria na área que se estende entre os municípios de Aracruz, Linhares, São Mateus e Conceição da Barra, região onde se concentram grande parte dos territórios quilombolas e pesqueiros do estado.
A autorga de autorização de exploração de petróleo está submetida ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e se dá à revelia dos proprietários do território em questão, obrigados a firmar compulsoriamente contratos de concessão de pesquisa e lavra (contratos de servidão) à empresa exploradora.
É o caso de Benedito Alves dos Santos, o Seu Corumba, cujo pai possuía 82 alqueires no território quilombola de Linharinho, em Conceição da Barra. Nesta área, dividida entre os cinco filhos após sua morte, a Petrobrás fez 28 poços que, de acordo com Corumba, inviabilizaram atividades produtivas para além de uma pequena agricultura de subsistência.
Na parte que lhe coube das terras paternas, Corumba “herdou” também 12 poços de petróleo. A contragosto, explica o quilombola, abandonou a roça e se mudou para a periferia de Conceição da Barra, onde ele e a mulher sobrevivem com a renda de um pequeno mercadinho montado na própria casa. Pelo uso da superfície de sua terra, a Petrobras está obrigada a lhe pagar uma determinada quantia a título de “arrendamento” , além de 1% do valor relativo ao preço do petróleo extraído a cada mês.
Ao contrario de Corumba, dona Olinda, sua irmã, segue vivendo em Linharinho. Imprensada entre os poços de petróleo e eucaliptais da empresa de celulose Fíbria – o município de Conceição da Barra tem 70% de seu território coberto por eucalipto e 15% ocupado por canaviais -, ela produz o que pode – um pouco de mandioca, um pouco de milho, algumas hortaliças, alguma criação – em um pedaço pequeno de terra. Corumba e Olinda contam que, onde passam os dutos, os cabos de força que alimentam os poços e nas cercanias do “cavalinho”, a bomba de petróleo, não se pode plantar nem manejar a roça. Segundo a agricultora, ela tem recebido da Petrobras cerca de R$ 800 por ano pelo arrendamento da parcela ocupada pela Petrobras e mais ou menos o mesmo valor pelo pagamento da produção de petróleo em suas terras. “E olha que isso é muito, já teve proprietário que recebeu cheque de dois reais. Na verdade, a gente nunca sabe quanto vai ganhar porque é a Petrobras que diz quanto o poço na minha terra produziu. E como vou saber se é verdade, se não estão me enganando?”, questiona Olinda.
Nos vários territórios quilombolas e indígenas visitados no final de junho entre Aracruz e Conceição da Barra, as reclamações se repetiram, bem como uma objeção radical à ampliação de instalações ligadas à cadeia produtiva do petróleo. Na aldeia Tekoha Porã, em Aracruz, por exemplo, o gasoduto da Petrobras atravessa o território rente às casas da aldeia Guarani do cacique Toninho.
Há placas demarcando a presença da estrutura, mas o telefone de contato para emergências está riscado. “Se houver vazamento, tudo pode explodir aqui. Como ficamos? Recentemente a Petrobras tentou entrar nas nossas terras para fazer limpeza ao redor do duto e nós não permitimos. Queremos que tirem isso daqui”, explica o cacique.
Em Regência, distrito de Linhares, a agricultora Katia dos Santos conta que a entrada da Petrobras nas terras da família foi traumática. “Entraram na marra. Derrubaram o pomar de mexerica que a gente cultivava para vender para a fábrica de balas Azedinha. A gente não podia mais queimar mato ou resto de lavoura no quintal por causa da Petrobras, e minha mãe morreu de infarto falando ao telefone com a empresa”.
De acordo com a agricultora, é importante que se tenha claro que “quem tem poços de petróleo em suas terras não enrica”. “Tem gente que acha que ter a Petrobras no quintal é uma grande vantagem. Mentira! Eu e meus 14 irmãos recebemos R$ 18 mil por ano pela ocupação de nossa área de 18 alqueires. Em royalties, tem mês que pagam R$ 23, tem mês que pagam R$ 5. Isso nunca vai compensar a perda das terras e da produção!”
Projeção de investimentos
Segundo a Secretaria de Estado de Economia e Planejamento do Espirito Santo, entre 2013 e 2018 estão previstos investimentos de R$ 54 bilhões em energia, dos quais R$ 45,5 bilhões financiarão projetos de extração de petróleo e gás no Estado, R$ 11,6 bilhões em mineração e R$ 8,9 bilhões em produção de produtos químicos. Atividades de atenção à saúde humana, por outro lado, devem receber cerca de R$ 794 milhões no mesmo período.
“Aproximadamente 90% do total investido em Energia é direcionado a exploração e processamento do petróleo e gás. Disto, pode-se extrair que pouco mais de 40% de todos os investimentos anunciados para o Espírito Santo são voltados para a exploração e processamento de petróleo e gás natural. (…) Dentre os principais investimentos anunciados nesse setor estão a implantação de um complexo de gás químico, de um complexo portuário e de usinas de pelotização”, aponta o documento “ Investimentos anunciados para o Espírito Santo 2013 – 2018”.
Aliada aos projetos industriais de papel e celulose, cujos eucaliptais vêm tomando territórios tradicionais desde a década de 1970 (o Espírito Santo tem cerca de 250 mil hectares de florestas de eucalipto), a cadeia produtiva da indústria petroleira não apenas inviabiliza a permanência das populações em suas atividades, como traz consigo um rastro de violência (estupros, drogas, desestruturação familiar, etc), doenças (câncer, intoxicações, problemas respiratórios), insegurança alimentar, degradação ambiental e precarização das relações de trabalho, entre outros, denunciaram quilombolas e pescadores.
O quadro de impactos é similar em todos os estados representados no encontro de Vila Velha. “Tudo que a gente tem, eles querem”, explica a marisqueira e líder quilombola Eliete Paraguassu, moradora da Ilha de Maré, na Bahia. Segundo ela, os quilombolas da ilha convivem com problemas diversos causados por sete poços de petróleo terrestres e sete em seu território pesqueiro, além de sofrer os impactos do porto de Aratu e do estaleiro Paraguaçu (empreendimento das empreiteiras Odebrecht e OAS, falido depois da Operação Lava Jato).
De acordo com Eliete, a contaminação ambiental na região tem levado ao desenvolvimento de doenças até então inexistentes na comunidade, e há casos de moradores com câncer, problemas respiratórios e outros. A quilombola também denunciou um aumento exponencial da violência, citando estupros de pescadoras e marisqueiras após a chegada de um grande contingente de operários das obras.
“Nós mulheres não temos mais segurança para seguirmos nas nossas atividades. E quando nos manifestamos, as empresas ameaçam demitir marido de mulher que reclama. Que tipo de geração de emprego é esse? O pescador vai para a obra do estaleiro, vende barco, vende rede, depois ajuda a aterrar o manguezal, destruir as coroas de mariscos. Aí o estaleiro faliu, o marido desempregou, a mulher não tem onde mariscar, e o que será da família?”, questiona Eliete.
Modelo petroleodependente
Diante deste cenário, os representantes de comunidades e movimentos quilombolas e de pescadores artesanais reunidos em Vila Velha lançaram a Campanha Nem um Poço a Mais!, cujo objetivo é frear a expansão petroleira sobre seus territórios. De acordo com Joana Barros, assessora da Fase, a campanha é de fundamental importância para visibilizar os impactos que têm significado a expansão e aprofundamento do modelo petroleodependente: violência contra populações nos territórios e inviabilidade dos modos de ser e de viver, desterritorialização, contaminação ambiental etc. “É preciso discutir radicalmente o modelo de desenvolvimento que está em curso no país, colocando no horizonte outras formas de viver e produzir, que não signifiquem sofrimento e degradação para setores que historicamente tem sido penalizados pelo aprofundamento deste modelo. A campanha afirma o direito de povos e grupos de viver em seus territórios”, explica Joana.
Em carta elaborada ao final do encontro, os participantes afirmam que “Estamos lançado esta campanha a partir das nossas realidades, vidas e quereres. É dos nossos territórios, onde vivenciamos toda a violência da cadeia produtiva petroleira, que se construirá a nossa luta. (…) Exigimos ser considerados em nossa soberania e direito de autodeterminar nossos futuros”.
Leia na íntegra a Carta do encontro de lançamento da “Campanha Nem um poço a mais!”
“Tudo o que a gente tem, eles querem” Nós, pescadoras e pescadores, marisqueiras e marisqueiros, comunidades quilombolas e urbanas que vivemos do que o mar, os rios, a terra e as florestas nos dão, vimos a público afirmar: Há tempos o Brasil achou por bem buscar um desenvolvimento que se constrói às custas de nossos territórios, numa lógica petrodependente que vem se apoderando de tudo que é nosso. Com a instalação de poços, portos, estaleiros e dutos que nos invadem, nos poluem e nos roubam nosso sustento, a paz e os sonhos de futuro no mar e na terra, nossa existência é violada também por mineradoras que produzem a matéria prima para a construção de infraestruturas; enormes desertos verdes de eucalipto que fornecem o carvão para as siderúrgicas; e canaviais infinitos que energizam esta engrenagem. A cadeia produtiva da indústria do petróleo, arrancado das profundezas do nosso chão para alimentar mercados vorazes em outros países, nós a vivenciamos como uma predadora múltipla. No último período, o Brasil foi abalado por sucessivas denúncias que revolveram um pântano de irregularidades na qual a cadeia produtiva da indústria petroleira de nosso país tem chafurdado há anos. A Operação Lava Jato nos confrontou com uma incômoda verdade: sem violações e crimes de todo tipo, esta indústria, da forma em que está estruturada, não opera. Nós, que somos obrigados a conviver com os poços de petróleo e suas infraestruturas nos nossos quintais, mangues e águas, entendemos que este momento de crise nos cobra uma reflexão sobre o modelo de desenvolvimento calcado na petrodependência econômica e política em que estamos afundando o nosso país. De que nos valem os empregos gerados por esta máquina, se nossos filhos, maridos e mulheres são obrigados a destruir seus próprios territórios em troca de um salário que, em poucos anos, deixará de existir? O pescador que vende seu barco e sua rede para aterrar os manguezais onde é construído um poço, um porto, um duto, do que vai viver ao final da obra? Do que viverá sua família que perdeu o direito de pescar nas áreas de plataformas, que perdeu os mariscos nos arrecifes e coroas destruídos? De que viverá o quilombola sufocado por poços de petróleo que contaminam a terra, por desertos verdes e agrotóxicos, todo esse povo que teve a água e o ar poluídos e se contorce em cancer, embolias pulmonares e intoxicações com metais pesados? Nós dizemos que este modelo não nos serve, e não estamos dispostos a nos sacrificar e perder os nossos modos de vida em nome de um desenvolvimento que não nos diz respeito. Afirmamos que é hora de repensar e agir sobre a expansão petroleira e da teia de empreendimentos predadores que a alimenta. Já basta! Nossa decisão é de tornar público nossa demanda: NEM UM POÇO A MAIS! É por isso que lutaremos. Estamos lançado esta campanha a partir das nossas realidades, vidas e quereres. É dos nossos territórios, onde vivenciamos toda a violência da cadeia produtiva petroleira, que se construirá a nossa luta. Afirmamos que a terra e o mar, para além dos que neles trabalham, é de quem neles vivem. Vimos a público afirmar que nossa dor e nossa luta têm dignidade. Não seremos criminalizados e hostilizados por nossa decisão. Com a sabedoria dos que preservaram desde sempre os territórios, nos declaramos aptos a zelar por eles e pelos bens naturais neles contidos. Exigimos ser considerados em nossa soberania e direito de autodeterminar nossos futuros.
Vila Velha, 28 de junho de 2015
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Fuente: Fundação Rosa Luxemburgo