Brasil: plantas medicinais e tradição de raizeiros somem da Estrada Real
Mineração e desmatamento contribuíram para extinção de espécies no trecho que ligava a Corte no Rio ao interior
A riqueza de Minas Gerais era mais que ouro puro. Ao longo da Estrada Real, que ligava a Corte no Rio ao metal do interior, havia uma vegetação diversa que escondia preciosidades: plantas com propriedades medicinais, cujo conhecimento passou dos índios aos caboclos e negros, até chegar aos naturalistas nos séculos 18 e 19.
Ao contrário do ouro, finito, a riqueza biológica poderia ter sido aproveitada por gerações futuras. Mas aconteceu justamente o contrário: as plantas têm sumido desde a abertura da estrada com o desmatamento, a mineração e a industrialização. Com eles, somem agora os últimos raizeiros, homens e mulheres que guardam o conhecimento tradicional.
Esse foi o quadro observado por uma equipe da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderada pela professora Maria das Graças Lins Brandão. Ela correu 150 municípios do Estado em busca de informações sobre plantas medicinais tradicionais da região e filmou um documentário.
Graça (como Maria das Graças assina seus trabalhos) tem um projeto aprovado na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) de popularização da ciência. Na busca por informações no campo, descobriu que elas estão em extinção.
'Aqui em Minas está tudo detonado depois da mineração e do gado. Poucas pessoas conhecem as plantas', conta. Segundo ela, o que mais é usado hoje nos tratamentos naturais são na verdade espécies importadas. 'Vimos hortas com capim-cidreira, capim-limão, babosa, mas não são do Brasil: 95% são de fora. Cadê a biodiversidade que todo mundo fala?'
Ciclos
A biodiversidade sucumbiu frente aos consecutivos ciclos econômicos por que passaram Minas e o País. Eles começaram com a chegada da Família Real e continuaram pela República.
A Estrada Real não era uma, mas algumas vias que ligavam Paraty e Rio, então capital do Império, às reservas de ouro e diamante. Elas receberam esse nome após a Família Real instalar postos para registro e arrecadação de impostos das atividades de exploração dos minérios e transporte de cargas. A partir dos anos 1820, elas se consolidaram como a principal rota de abastecimento do interior e de exportação de ouro, pedras e produtos agrícolas.
'Topograficamente este era o caminho mais fácil. Então, fizesse chuva, fizesse sol, havia movimento ali de escravos, mulas do Sul e tropeiros em constante passagem', conta o geólogo Frederich Renger, também da UFMG e estudioso da história da Estrada Real.
Na época em que os postos foram inaugurados e as primeiras fazendas, estabelecidas, Minas era coberta por mata atlântica e cerrado. O nome das novas vilas refletiam a paisagem: a moderna Itabira, por exemplo, era originalmente Itabira da Mata Dentro, enquanto a atual cidade de Itabirito era a Itabira do Campo.
O conhecimento tradicional era corrente e valorizado por moradores e viajantes. Com raízes, folhas e seiva ao alcance das mãos, o cuidado das enfermidades baseava-se na medicina natural. A população aprendera com os índios o poder curativo da flora brasileira, e as difíceis condições de moradia e movimentação pela Estrada Real mantinham a tradição viva.
O aprendizado era passado de pai para filho. No século 19, a população preferia ser tratada pela medicina prática do que pela acadêmica. Os médicos estavam na capital - e eram caros.
Registros
Tal naturalidade com que as plantas medicinais faziam parte do cotidiano foram retratadas pelos naturalistas europeus que passaram pela região. Entre eles estão Auguste Saint-Hillaire, Carl von Martius e o médico por formação Georg Heinrich von Langsdorff, que descreveu minuciosamente o uso medicinal da vegetação por índios e populações tradicionais.
'Não foram frutíferas, por causa da seca então reinante, as excursões que realizei. (...) No campo aparecem também plantas raquíticas, que agora apenas vivem do orvalho noturno: o barbatimão, árvore de aspecto triste, e só de tamanho mediano, mas que, por suas virtudes medicinais, é muito estimada no país', escreveu o botânico austríaco J. E. Pohl, no Brasil entre 1817 e 1821.
Os naturalistas também registraram o perigo crescente da derrubada de árvores. Apesar de já naquele período a proteção da floresta ser prevista por determinação da Família Real, a atividade agropastoril se expandiu rapidamente. 'Se plantou muito (naquela época), com fazendas de gado. É um mito dizer que isso não existia em Minas', diz Renger.
Resgate do conhecimento
A modernização levou ao declínio da tradição. O desmatamento foi intensificado pela produção agropecuária extensiva, enquanto a industrialização, impulsionada pelo mineiro Juscelino Kubitschek a partir de 1956, incentivou o êxodo rural e a entrada de indústrias farmacêuticas internacionais, com seus remédios sintéticos.
Graça precisou correr atrás dos registros deixados pelos naturalistas, a maioria depositados na Europa, para resgatar o conhecimento. Com base neles, selecionou 20 de 100 espécies brasileiras com propriedades medicinais e mapeou todos os pontos em que sua incidência foi detalhada.
Mas o trabalho mais penoso foi perceber que o conhecimento nascido pela observação indígena encontra-se em vias de sumir - e não apenas pela redução nos estoques das plantas. Nos 150 municípios visitados, a professora encontrou 206 destes 'informantes sábios', como ela chama os raizeiros. Nenhum deles conhece as propriedades das 20 espécies.
Todos nasceram antes de 1940. 'Já perdi seis deles desde que comecei o trabalho', diz. Seus filhos não se interessam pelo assunto. Querem ficar na cidade, cursar faculdade e arranjar emprego. Os próprios raizeiros sabem que são um tipo em extinção e que são vistos com desdém.
Graça quer estimular o interesse pelo tema entre os jovens. O documentário será levado a escolas e parques. Além disso, ela conversa com o Ministério Público de Minas para resguardar quem conhece as plantas.
Pretende dar-lhes o status de 'guardiães', com direito a salário. Falta também retomar o estoque das plantas.
Depois de tudo, e com organização e investimento maciço em pesquisa e desenvolvimento, talvez a biodiversidade brasileira possa novamente ser aplicada para tratar a população com seus próprios recursos.