Brasil: ''nossas florestas vão estar menos protegidas do que em 1934''
"Desde 1934 temos uma regra que fala que as beiras de rios têm que ser protegidas, porque são frágeis e importantes. Agora aprovou-se uma regra dizendo que nesse lugar pode ter atividade agropecuária", afirma Raul Silva Telles do Valle, advogado do Instituto Socioambiental
Entrevista concedida a Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 27-05-2011.
Eis a entrevista.
Porque consideram péssimo o que foi aprovado pela Câmara na terça-feira?
Porque foi elaborado por pessoas que têm como princípio que a conservação e recuperação de florestas são um empecilho, um obstáculo ao desenvolvimento nacional, e portanto, deve ser removido ou diminuído. Não partiram do pressuposto da legislação atual, de 1965, que a conservação e recuperação de florestas é uma condição para uma boa produção agropecuária no país. É um retrocesso porque esse texto parte de um pressuposto ideológico que é do século 19 e vai modificar a legislação de tal forma que nossas florestas vão estar menos protegidas do que em 1934, quando foi aprovado o primeiro Código Florestal brasileiro.
Como assim?
Por exemplo: desde 1934 temos uma regra que fala que as beiras de rios têm que ser protegidas, porque são frágeis e importantes. Agora aprovou-se uma regra dizendo que nesse lugar pode ter atividade agropecuária.
Porque vocês dizem que o texto estava cheio de "pegadinhas?
Por várias razões. Primeiro ele é um texto diferente do que tinha sido acertado com o governo e foi o que fez cair a sessão de 10 dias atrás. Não são grandes diferenças, não é que se tirou um capítulo inteiro. Mas modificou uma palavra, tirou um parágrafo, pequenas coisas que modificam muito o sentido das regras onde foram incluídas. É um texto cheio de regras ambíguas. Um texto que diz uma coisa, mas nas entrelinhas diz outra.
Pode dar um exemplo claro dessa ambiguidade?
Um exemplo claro é a Emenda 164. O que eles dizem é que não haverá autorizações para desmatamento em Áreas de Preservação Permanente, as APPS, que são topo de morro, encostas, margens de rio.
E isso não é verdade?
Não. O parágrafo 4 da emenda diz que o Programa de Regularização Ambiental (PRA) irá regularizar a manutenção de outras atividades consolidadas nas APPS, "vedada a expansão das áreas ocupadas." Então, embora diga que não vai haver mais desmatamento, este artigo está permitindo novos desmatamentos nestas áreas.
Como assim?
A lei hoje diz que as APPs têm que ser preservadas, o que significa não que não devem ser utilizadas para outra finalidade que não seja manter a floresta ali. Com exceções: nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental. Ou seja, para fazer uma estrada, uma casa perto de um rio na Amazônia porque não tem como buscar água longe, em casos excepcionais e de baixo impacto. Mas agora também se permitem novos desmatamentos nas APPS para atividades agrícola, pecuária ou de silvicultura, o que abrange quase todas as atividades possíveis no meio rural. A cabeça do artigo diz que a intervenção ou supressão de vegetação - novos desmatamentos -, inclui além daquelas três hipóteses, "atividades agrossilvopastoris". Esse termo, essa "pegadinha", permite o desmatamento de APPs quando se quiser plantar cana, criar gado ou plantar eucalipto. É um absurdo, desmonta a regra. Na prática, essa Emenda 164 extingue com as APPS no país. Vai passar a ser exceção os casos de proteção às APPs. Qualquer pastagem ou plantação de eucalipto vai justificar, por esta regra incluída aqui, novos desmatamentos.
Quem irá definir isso?
Na proposta do texto base seria definido por decreto presidencial, que nós já achamos ruim porque atualmente quem define é o Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], que tem representação das três esferas de governos, da sociedade civil, dos empresários, sindicatos, ONGs. O órgão define a regra geral, ou seja, diz se, por exemplo, uma atividade de mineração é de utilidade pública e que justifica desmatar uma APP por isso. A regra do texto-base tirava do Conama esse poder e centralizava no presidente da República. Se definiria por decreto, sem passar por um crivo social como existe hoje. Mas a emenda aprovada - e este foi o aspecto que transpareceu mais, mas não é o mais grave, fala o seguinte: agora quem irá definir são os programas de regularização ambiental, feitos pelo Estados. Programas que não existem, cada Estado terá o seu próprio. Cada Estado irá definir em seus programas quais são as hipóteses de baixo impacto, utilidade pública, ou algo que já está na lei, as atividades agrossilvopastoris. Se hoje alguém chegar e falar quero desmatar essa beira do rio para colocar pasto ouvirá que não pode porque a área é de preservação e a atividade não é de interesse social, nem utilidade pública, nem de baixo impacto. Mas se o que foi votado pela Câmara virar lei, será autorizado. É ainda pior.
Pior como?
Os Estados poderão definir outras atividades, que não consigo nem imaginar quais, que justifiquem desmatar APPs. Então, passamos a ter uma situação em que as exceções são mais numerosas do que a regra.
Qual o principal problema dessa lei?
Ela tem um problema geral e vários específicos. O geral é o pressuposto de que a proteção das florestas não é importante. A ideia que está sendo vendida na base, nos sindicatos rurais, é que a lei vai perdoar as ocupações que hoje são ilegais. Esse é o elemento central dessa lei. Esse projeto não se preocupou em aperfeiçoar a proteção das florestas, embora seja um Código Florestal, mas em facilitar a vida dos que derrubaram florestas em áreas que deveriam estar preservadas. Assim se passa uma mensagem de que esta lei não é para valer, e ao fazer isso, já se tem o impacto do aumento em mais de 500% no desmatamento do Mato Grosso, por exemplo.
Ela mistura duas situações, não é?
Sim. Mistura a situação daquele que ocupou áreas legalmente mas entrou na ilegalidade quando a lei foi modificada, com os muitíssimos casos de quem deliberadamente enfrentou a lei, fez isso até 2008 e vai ser perdoado também. E não só da multa, que não é o principal, mas de recuperar essas áreas. Ao misturar aquele que agiu de boa fé e aquele que agiu de má fé, e legalizar tudo junto, o sinal que se dá para a sociedade é "atente contra a lei que em breve haverá outra e reconhecerá tudo como fato consumado". O Artigo 8 faz uma anistia geral, para todas as APPs. Mas têm outros tipos de anistias, em outros artigos. Esta lei é permissiva e perniciosa. Permite que não se multe quem desmatou e que não se recupere. É inaceitável. E ainda mais, é ainda pior. Esse projeto tem um conjunto de medidas que estimula novos desmatamentos.