Amazônia, uma região de poucos. Uma história real sobre como a ausência de governança facilita o desrespeito às leis e a barbárie no Norte do Brasil
Nos dias 20 e 21 de agosto, no município de Juína, norte do Mato Grosso, a sociedade brasileira viu mais um exemplo das práticas de alguns agentes do setor agropecuário que estão se embrenhando na floresta Amazônica. Fazendeiros e políticos dessa cidade impediram a visita de um grupo de ambientalistas, antropólogos e jornalistas à Terra Indígena Enawene-Nawe. O grupo era formado por ativistas do Greenpeace, representantes da organização indigenista Operação Amazônia Nativa (OPAN) e por jornalistas internacionais, que pretendiam visitar os Enawene Nawe, com a autorização de suas lideranças
Pouco depois da chegada da equipe à cidade, três fazendeiros os abordaram querendo saber quem eram e o que estavam fazendo em Juína. Entre os fazendeiros estava o sr. Aderval Bento, que se apresentou como presidente da associação dos produtores rurais do Rio Preto (Aprur). Ele queria saber se a visita do grupo estava relacionada à identificação de uma área pleiteada pelos indígenas, a região do rio Preto. O presidente da Aprur, que diz possuir terras na região, passou então a dizer que a demanda dos Enawene estaria sendo estimulada pela Opan e passou a criticar duramente a organização. A ele foi dito que o destino do grupo era a aldeia indígena e não a região do Rio Preto.
Como parte do seu trabalho de expor a devastação da Amazônia, o Greenpeace documenta desmatamentos e queimadas em toda a região, o que motivou a passagem pela cidade em direção à terra indígena. O objetivo da escala em Juína e ida à aldeia Halatakwa era fazer um trabalho jornalístico para mostrar que esse povo indígena - que vive de agricultura e pesca - tem uma convivência sustentável com a floresta e a diversidade biológica, apesar de fazer pequenos desmatamentos para suas roças e barragens provisórias para a captura de peixes. Para isso, o Greenpeace procurou a Opan e pediu a ajuda da organização para contatar os Enawene e organizar a viagem.
A ida à aldeia foi autorizada pela liderança indígena que, em contrapartida, pediu que alguns líderes fossem levados para sobrevoar a região onde está prevista a construção de pequenas centrais hidrelétricas que poderão impactar os rios de onde retiram seu alimento. Os jornalistas franceses documentavam ainda o trabalho do Greenpeace e a relação entre a entidade ambientalista e os grupos locais.
Os fazendeiros ficaram ainda mais irritados quando souberam que jornalistas integravam o grupo que estava no hotel. Foi dito claramente pelo grupo de fazendeiros que eles iriam se opor ao processo de reconhecimento da área e não iriam admitir a perda das terras que dizem ser suas. Foi uma conversa tensa.
O representante da Opan esclareceu que são os indígenas quem reivindicam a reintegração de parte do território tradicional que teria ficado de fora da demarcação feita em 1996, e que contém uma área de pesca cerimonial, fundamental nos rituais sagrados dos Enawene. Os três fazendeiros fizeram comentários que já pareciam conter uma ameaça velada ao representante da Opan.
Na manhã seguinte, o hotel onde a equipe se hospedava foi cercado por mais de uma dezena de fazendeiros, entre eles o presidente da Câmara Municipal de Juína. Eles exigiam esclarecimentos sobre os objetivos da viagem, mais uma vez apresentados em detalhes: a viagem não se destinava à área em disputa, mas à aldeia indígena Halatakwa, situada na TI Enaewne Nawe, terra essa já demarcada e homologada pelo governo federal. Os fazendeiros não acreditaram e chegaram a praticar constrangimento físico. O presidente da Câmara, senhor Chicão, exigiu que o coordenador do Greenpeace se identificasse e abandonasse a idéia de ir à terra indígena. Tanto o pedido inusitado de identificação quanto a proposta de abandonar nosso objetivo foram rejeitados por serem descabidos.
O grupo visitante foi intimado pelos fazendeiros e o presidente da Câmara a seguir para a Câmara Municipal, onde uma sessão especial foi rapidamente organizada. Naquelas circunstâncias, o grupo se sentiu coagido a obedecer para evitar conflitos que inviabilizassem a viagem e aumentassem os riscos a que estão submetidos tanto a Opan quanto os Enawene.
A reunião na Câmara foi longa, tensa – durou cerca de 6 horas – e marcada por ameaças diretas ou veladas. Estavam presentes o prefeito da cidade, Hilton Campos, o presidente da Câmara, o presidente da OAB local, o presidente da Aprur, e dezenas de vereadores e fazendeiros. A sessão variou entre um debate e um clima de interrogatório policialesco pleno de ameaças.
Os fazendeiros repetiram que a entrada do grupo na terra Enawene Nawe não seria permitida e que seria “perigoso” insistir na viagem. Foi dito que todas as lideranças locais, a polícia e o judiciário estavam com os fazendeiros. Esmurrando a mesa, o prefeito Hilton Campos afirmou que os visitantes não eram bem-vindos a Juína e que ele não iria permitir a ida do grupo para o Rio Preto em hipótese alguma, sendo aplaudido fervorosamente pelos colegas fazendeiros. Ele chegou a afirmar que a estrada seria bloqueada, mesmo depois de termos declarado que não era não era a intenção do grupo identificar a área do rio Preto.
O senhor Aderval Bento ofereceu como alternativa uma ida à TI Arara, mas não aos Enawene, prosposta que também foi recusada por caracterizar intromissão indevida no direito de imprensa. O presidente da Câmara, sr. Chicão, disse, que “se sair a ampliação da terra indígena, o conflito será inevitável”. Várias dessas declarações e ameaças foram gravadas em vídeo e estão disponíveis na Internet com o mesmo nome deste artigo.
Depois de reiterar a natureza da viagem, o coordenador do Greenpeace disse que aquela reunião era uma clara demonstração de que o direito constitucional de ir e vir e a liberdade de imprensa não valiam em Juína.
Para evitar maiores conflitos e por estar a ida de barco, que leva mais de 6 horas, à TI Enawene Nawe inviabilizada àquela hora, a viagem foi cancelada. O grupo, então, se retirou da Câmara e se dirigiu ao local de encontro com os Enawene, uma ponte sobre o Rio Preto a 60 km de distância de Juína, para dar a eles combustível e comida para a sua volta à aldeia e anunciar o cancelamento da viagem. A viagem foi feita sob escolta policial. Mas nem isso evitou que os fazendeiros, que acompanharam a viagem de ida e volta em oito caminhonetes lotadas, continuassem intimidando e ameaçando o grupo visitante.
Ao retornar a Juína, o grupo se dirigiu ao hotel para saldar a conta e partir. Curiosamente, as linhas telefônicas que permitiriam o pagamento com cartão de crédito não funcionavam. O piloto do avião que havia ido buscar a equipe informou pelo celular que teria que decolar antes do pôr-do-sol. A seguir ligou novamente para avisar que uma pick-up branca havia chegado ao aeroporto vazio, o que lhe pareceu suspeito. Foi recomendado, então, que ele decolasse e voltasse para Vilhena (RO), garantindo assim tanto a segurança do avião quanto a do piloto.
O grupo permaneceu no hotel, de onde não pode sair nem para comer por falta de segurança. Uma viatura da Polícia Militar ficou na área. Os soldados da PM não impediram que um dos fotógrafos da equipe fosse agredido depois de tentar documentar a agressão de um fazendeiro ao indígena Enawene Ameiro, que havia chegado ao local dos fatos para ver o que acontecia. Ameiro integrava um grupo de sete Enawene que estava na cidade em tratativas com o posto local da Funai. Todos foram coagidos pelos fazendeiros, que em seguida invadiram a recepção do hotel, foram contidos e retirados do local por policiais militares.
O grupo visitante foi advertido a não deixar o hotel e partir de Juína o mais rápido possível, o que caracteriza claro constrangimento ilegal, impedimento ao direito de ir e vir e ameaça à integridade física. Para assegurar isso, os fazendeiros fizeram uma vigília em frente ao hotel durante toda a noite. Eles se reuniram no bar em frente ao hotel, onde bebiam e proferiam ameaças e ofensas à Opan, aos Enawene e aos visitantes. O representante da Opan foi intimidado pelos fazendeiros, que proferiam ameaças como “vocês merecem ser amarrados e arrastados pelas ruas em caminhonete para servir de exemplo”, ou “se sair a demarcação, vocês vão ter que sumir do Brasil, porque vamos achar vocês em qualquer canto”. Ao representante foi dito também que ele não tem sete vidas e deve tomar cuidado. Foi dito pelos fazendeiros que se, os indígenas entrarem no rio Preto para pescar, “vai morrer índio lá” e que “qualquer índio que morrer será de responsabilidade da Opan”.
No início da noite, a viatura policial que estava em frente ao hotel se retirou. Preocupado com o fato de que o grupo de fazendeiros não parava de crescer, o coordenador do Greenpeace telefonou ao coronel da PM e pediu ajuda. O coronel se dirigiu ao hotel, tentou tranquilizar o coordenador e disse que Juína era uma cidade ordeira e pacífica. Disse também que seria melhor não sair do hotel e se prontificou a comprar comida para os visitantes. A proposta foi gentilmente recusada, já que caracterizava ainda mais o absurdo da situação, além de confirmar os temores da equipe. Foi solicitado ao coronel apenas a presença de uma viatura policial em frente ao hotel durante a noite, para evitar invasões e agressões por parte dos fazendeiros.
No dia seguinte, por volta de seis e meia da manhã, o grupo, acompanhado por duas viaturas policiais que em tese o protegiam, se dirigiu ao aeroporto. O ritual de expulsão e humilhação ao que o grupo foi submetido incluiu um cortejo de 30 caminhonetes de luxo, entre elas Toyotas e Mitsubishis, lotadas de fazendeiros, escoltando a equipe até o destino final, atravessando a cidade com faróis acessos e buzinando sem parar, enquanto insultavam e ameaçavam os visitantes.
Ao chegar ao aeroporto o grupo foi advertido por fazendeiros a decolar imediatamente, ou o avião seria atacado. A proteção dos visitantes era feita pelos soldados PM, que estavam em número muito inferior aos fazendeiros. Mais tarde o grupo soube que o grupo de Enawene que estava na cidade tentou se dirigir ao aeroporto para dar apoio aos visitantes, mas a estrada foi bloqueada por caminhonetes. Logo após a decolagem do avião que levava a equipe, os fazendeiros, de volta à cidade, invadiram a sede local da Funai.
O episódio narrado acima ocorria ao mesmo tempo que os governos federal e estadual celebravam a queda das taxas de desmatamento na Amazônia. Seu desfecho, entretanto, mostra que essa queda pouco tem a ver com a presença do governo na região, que é rala ou ainda está muito distante do mínimo necessário, uma vez que as autoridades locais agem como verdadeiros xerifes da floresta e senhores do direito alheio.
É inaceitável que fazendeiros, com o apoio de autoridades locais, cerceiem a liberdade que todo cidadão tem de ir e vir e revoguem a Lei de Imprensa, cassando o direito de jornalistas exercerem sua profissão com segurança. O clima de violência anunciada e as ameaças de morte aos indígenas Enawene e à Opan são preocupantes.
Por isso, foi solicitado ao Ministério Público Federal a apuração dos fatos e a determinação de providências para que os povos indígenas como os Enawene-Nawe e as entidades que os apóiam, como a OPAN e a Funai, tenham assegurados o direito à vida, ao trabalho e à defesa de seus interesses. E que a disputa pela terra e pelos recursos florestais em Juína possa ocorrer de forma democrática e pacífica, assegurados os direitos e deveres dos grupos existentes na cidade, respeitada a Constituição Brasileira.
Os membros da organização também são vítimas de ameaças, em geral vindas dos setores e das pessoas que acreditam estar acima das leis do país.
Lamentamos que o episódio em Juína não seja uma página isolada na triste história de violência que acompanha a presença do setor agropecuário na Amazônia. E reafirmamos que, enquanto o governo federal não se fizer presente em toda a região, a expansão da fronteira agropecuária e a exploração ilegal e descontrolada de produtos florestais ameaçará permanentemente o direito das populações tradicionais de permanecer em seu território, o direto das entidades ambientalistas de preservar e promover o uso sustentável da biodiversidade amazônica e o direito dos jornalistas de exercer seu papel em liberdade e segurança.
Por João Pedro Stedile e Paulo Adario
João Pedro Stedile é integrante da coordenação nacional do MST e Paulo Adario é o coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace.