Agrotóxicos: ‘Os interesses econômicos não podem se sobrepor aos interesses da vida’
Entrevista a Aline Gurgel. Arroz, feijão... e veneno. Líder mundial no consumo de agrotóxicos, o Brasil tem posto mais ingredientes nocivos no prato da população, em processo desenfreado de autorização de novos pesticidas. A porteira permissiva foi aberta durante o governo Temer – 450 novos produtos foram liberados em 2018, ano em que também foi colocado em pauta o Projeto de Lei 6299/02, o PL do Veneno, que facilita a liberação de novas substâncias.
A gestão Bolsonaro não aponta tendência diferente: só nos primeiros meses de 2019, já foram realizadas 86 autorizações. A Anvisa abriu em fevereiro a consulta pública sobre o uso do glifosato, agrotóxico mais utilizado no Brasil e do mundo, que ao lado de outros pesticidas está em reanálise no nosso país desde 2008, por suspeita de danos à saúde. As notícias recentes soam escandalosas para os especialistas na temática: “Como é que um ingrediente ativo de agrotóxico está em reavaliação desde 2008, em função de riscos que são considerados proibitivos para efeito de registro de produtos, e a gente libera agora um produto formulado exatamente com esta substância?”, indaga Aline Gurgel, doutora em Saúde Pública e vice-coordenadora do Grupo de Trabalho de Agrotóxicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do qual participam também pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, a pesquisadora destaca a importância da produção de pesquisa independente, sem conflito de interesses, e defende a inversão da lógica que norteia as liberações: “Quem tem que provar se o produto é inócuo para a saúde humana é o interessado em seu registro. (...) A gente não pode pagar para ver qual vai ser o dano e a dimensão dele”, afirma.
Estudos científicos, entre eles um dossiê produzido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em parceria com a Fiocruz, indicam que o Brasil é um dos líderes no consumo de agrotóxico de todo o mundo, mesmo antes dessa recente disparada na liberação de produtos. A que se deve esta liderança negativa?
Se considerarmos os dados liberados pelo Ibama – que divulga as informações da quantidade de produtos comercializados no país – e compararmos com outros países, o Brasil é o líder disparado de consumo de agrotóxico no mundo. Isto ocorre muito devido ao aumento das monoculturas no Brasil, especialmente da soja e da cana, que são grandes consumidoras de agrotóxicos. Este é um modelo dependente do uso de veneno. Onde há grandes áreas de monocultivo, não há grande biodiversidade , e não tem como fazer o controle das espécies espontâneas que vão surgindo ali – o que o agronegócio chama de praga. Quando o ambiente é equilibrado, biodiverso, o controle dessas espécies é feito naturalmente, mas na monocultura existe a dependência do uso de insumos químicos para realizar esse controle. Como há sempre um aumento da resistência dessas espécies aos venenos, é preciso aumentar também a quantidade de produtos utilizados, substituir ou associar moléculas. Isso implica maior fardo para as populações expostas, maior contaminação ambiental, aumento de risco geral.
No fim de fevereiro, em audiência da Comissão de Agricultura, a senadora Eliziane Gama (PPS-MA) apresentou dados atribuídos à Fiocruz e à Organização Mundial de Saúde (OMS), de que “cada brasileiro consome, em média, 7,3 litros de agrotóxicos”. A ministra da Agricultura, Teresa Cristina, disse discordar “totalmente” da pesquisa, “de sua metodologia, números e conclusões”. Você pode nos explicar melhor a informação citada pela senadora e rebatida pela ministra?
Esse dado é de um documento pautado em estudos científicos. É bom dizer aqui: todo posicionamento institucional da Fiocruz é pautado pelo conhecimento científico, pela análise que é feita em cima dos resultados desses estudos. Com relação a esse cálculo de 7,3 litros por habitante, é preciso ressaltar que se trata de um consumo per capita. Não é, obviamente, uma afirmativa de que cada pessoa do país consome 7,3 litros. Esta é uma média, um cálculo simples, com o volume total comercializado dividido pelo volume da população brasileira. Não implica afirmar se cada cidadão consome mais ou menos... Isso é só uma confusão no entendimento do que o artigo aborda.
Há diferentes estudos sendo produzidos em todas as unidades da Fiocruz no Brasil, que são realizados de forma independente, por pesquisadores independentes, vinculados a um órgão expressivo do Ministério da Saúde, que é a Fiocruz. As pesquisas que são realizadas aqui, de maneira geral, envolvem profissionais com compromisso institucional e ético com a sociedade, com a produção de estudos científicos que busquem a promoção da saúde e a defesa da vida.
A Fiocruz possui um Grupo de Trabalho de Agrotóxicos, coordenado por você, que se debruça sobre a temática. De que forma o grupo atua?
O grupo é composto por pesquisadores de diversas unidades da Fiocruz no Brasil. Temos trazido debates importantes sobre agrotóxicos e saúde, para subsidiar tanto a população quanto os tomadores de decisão em relação aos perigos dos agrotóxicos e à importância de adoção de políticas regulatórias que busquem a promoção da saúde e a proteção da vida.
Sempre que surge na mídia um tema mais polêmico, como o PL do Veneno, o GT se articula para produzir documentos, falar de novas técnicas. Em dezembro de 2018, a Fiocruz lançou uma série temática com temas na área de saúde, ambiente e educação, que deu origem ao livro ‘Agrotóxicos e Saúde’ . O nosso grupo foi responsável por arquivar e organizar esse material, produzindo documentos institucionais.
Para este livro, foram feitas discussões centrais relacionadas à caracterização dos impactos de modelos de agrotóxicos, aos impactos dos agrotóxicos na saúde e no ambiente. Também tratamos dos conflitos de interesses que envolvem a produção de estudos científicos na área de agrotóxicos, dada a interferência das empresas na produção de estudos científicos. Trouxemos à pauta a regulação de agrotóxicos no Brasil e as recentes mudanças implementadas no contexto dessas reformas que têm sido adotadas no país, reduzindo o tamanho do Estado e flexibilizando a legislação que regula os agrotóxicos.
Neste contexto de flexibilidade da legislação que regula os agrotóxicos, e voltando à fala de Teresa Cristina na Comissão de Agricultura: a ministra afirma que o aumento acelerado da liberação de substâncias ocorre porque a “Anvisa decidiu trabalhar”. Pode-se dizer que havia, de fato, uma morosidade na ação da Anvisa?
O processo de registro de agrotóxicos no país depende de três ministérios: Agricultura, Meio Ambiente e Saúde. No âmbito do Ministério da Saúde, é a Anvisa que realiza a avaliação toxicológica dos produtos. Esse processo demanda a análise de estudos, tanto de toxicidade aguda quanto de toxicidade crônica. Todos esses estudos que são realizados precisam ser analisados com muito critério, porque você está tratando da vida das pessoas que vão ser expostas àquelas substâncias. Então, esse processo não pode ser feito sem que haja a preocupação primeira com a proteção da vida das pessoas. O argumento de uma morosidade burocrática não pode ser colocado como um instrumento para realizar as avaliações toxicológicas de forma praticamente cartorial, só para aprovar, sem que sejam resguardados os devidos cuidados nesses processos.
Há uma curva ascendente nos gráficos de liberação de registros no Brasil. Em 2018, um recorde histórico, com 450 produtos. Em 2019, apenas no início da gestão Bolsonaro, já foram 86 autorizações. A liberação desenfreada de registros representa descuido no processo de investigação da Anvisa?
O que eu posso dizer é que nem sempre a sociedade e a comunidade científica têm tempo de analisar adequadamente o que está sendo colocado no mercado brasileiro. Nesse processo acelerado, existem vários fatores que precisam ser aprofundados antes de se liberar um novo produto no mercado brasileiro.
Quais fatores precisariam ter sido levados em conta na análise dessas substâncias e que podem ter ficado de fora?
É preciso considerar que mesmo que a maioria dos produtos já fossem comercializados no país, essas novas liberações autorizaram novas misturas de substâncias sem as devidas análises. Quando dois produtos diferentes são combinados, não se sabe necessariamente o que está sendo produzido ali. A mistura de um ingrediente aditivo agrotóxico em outro pode dar origem a subprodutos de toxicidade desconhecida. Em outros casos, um pode potencializar o efeito tóxico do outro, com resultados também inéditos. E todos esses elementos parecem não ter sido considerados na liberação desses novos produtos, o que implica um aumento de perigo.
Então há produtos sendo utilizados nos campos do Brasil, frutos de novas misturas, que não tiveram seus efeitos sequer testados? E mesmo assim foram liberados?
É o seguinte: os estudos feitos no âmbito da liberação do produto analisam a exposição a um único ingrediente ativo de agrotóxico. Então, quando você combina um ingrediente ativo com outro ingrediente ativo, a mistura desses dois produtos pode dar origem a outros subprodutos que podem ter uma toxicidade diferenciada dos compostos parentais, tanto para a população quanto para o ambiente. Essas substâncias combinadas podem ter efeitos aditivos ou efeitos sinérgicos.
E isso o que isso significa?
O efeito aditivo é quando o efeito tóxico de uma substância se soma ao efeito tóxico de outra substância, então você tem uma toxicidade maior, somada. O efeito sinérgico ocorre quando uma substância potencializa o efeito tóxico da outra. Em suma, é como se 1+1 fosse igual a dez.
O argumento utilizado para autorização dessas novas misturas foi de que os ingredientes ativos já eram autorizados. Mas uma coisa é um ingrediente ativo, outra coisa é a mistura desses ingredientes ativos. A base sobre a exposição de mistura precisa ser aprofundada. Hoje, os estudos que a gente tem não são suficientes para dimensionar o impacto da exposição às misturas de agrotóxicos. Essa liberação não pode acontecer num sistema fast track, sem que seja aprofundado o debate sobre esses elementos e sobre os riscos para a saúde e também para o ambiente.
A reação de uma nova substância, ou da combinação de mais de uma substância já autorizada, também varia de acordo com a cultura em que é aplicada? Estes fatores são levados em consideração hoje para a liberação de um produto?
As avaliações para a liberação dos produtos não necessariamente consideram as condições climáticas, ambientais no país, nem a aplicação em novas culturas. Portanto, não há testes que comprovem que esses produtos não oferecem um risco para as populações expostas. É importante dizer que as liberações recentes podem implicar o aumento do perigo para as pessoas e também para contaminação do meio ambiente.
E com relação ainda aos estudos toxicológicos, além de serem feitos considerando a exposição a apenas um único ingrediente ativo, eles também analisam uma única via de exposição. O que ocorre é o seguinte: se eu quero autorizar um agrotóxico no país hoje, um ingrediente ativo de um agrotóxico, recebo exigências de estudos de toxicidade aguda, de toxicidade crônica, e pronto. Estes estudos são feitos isoladamente, sem a combinação de substâncias, e considerando uma única via de exposição: ou oral, ou inalatória ou dérmica. E as pessoas que se expõem no cotidiano com o uso do agrotóxico, geralmente, não se expõem por uma única via. E também não se expõem a uma única substância isoladamente. Ou seja, a realidade da exposição é totalmente diferente da que é estudada. Há vários fatores de incerteza que implicam perigo para a saúde humana.
No caso de possíveis efeitos negativos das novas substâncias, quais são as primeiras vítimas?
As pessoas que são mais frequentemente expostas são aquelas que vão apresentar primeiro os efeitos negativos. Nesse sentido, os que estão expostos na sua rotina de trabalho, no seu cotidiano, são os primeiros que adoecem e morrem. Portanto, tem que haver um olhar diferenciado para os trabalhadores envolvidos em processos produtivos que dependam do uso de agrotóxicos: seja na indústria, fabricando o produto, seja no campo, aplicando o produto. O adoecimento e morte de um trabalhador são considerados um evento sentinela. Porque isso vai indicar como as pessoas que estão expostas de outras formas no território, seja num ambiente contaminado, seja através da dieta, vão reagir...
Vivemos hoje um recorde de liberações, há produtos liberados que já foram associados ao câncer, e presenciamos também aceleração de processos de autorização... Qual a maior preocupação para a comunidade científica?
Os produtos liberados são formulados, eles não estão autorizando novos ingredientes ativos, todos esses ingredientes ativos já tinham uso autorizado no Brasil. O único que foi introduzido e que ainda não era utilizado foi o sulfoxaflor. Ele foi autorizado em dezembro do ano passado no Brasil, num processo que se deu muito rapidamente, sem que a comunidade científica e a população tivessem tempo suficiente para se debruçar sobre essa análise.
O aumento na liberação de produtos parece que está muito associado ao modelo de crescimento que tem sido adotado pelo país, pautado no neoliberalismo econômico e que tem se aprofundado desde a década de 1990. E mais acelerado recentemente. Esse modelo impõe a redução do tamanho do Estado, [o que resulta] numa flexibilização da normativa que regula o uso de agrotóxicos, por exemplo.
A liberação acelerada de produtos vem muito nesse cenário, de uma conjuntura macroeconômica que tem buscado a flexibilização das legislações e muitas vezes se dá em detrimento da proteção do ambiente e da saúde humana. As preocupações das comunidades científicas estão muito pautadas nos perigos que esses novos agrotóxicos representam. Em vez de a gente caminhar no sentido de reduzir o uso desses produtos, estamos caminhando no sentido inverso, e usando muitas vezes produtos que já são banidos em vários outros países.
No dia 19 de março, um júri de San Francisco, nos EUA, considerou que o Roudup (agrotóxico à base de glifosato) provocou câncer em um homem que usou o produto por décadas. Esta mesma substância está em consulta pública, desde fevereiro, para finalizar sua regulamentação no Brasil . Estamos ignorando a experiência e as pesquisas de outros países sobre os riscos de substâncias?
Muitos desses produtos formulados que foram liberados aqui são fabricados a partir de ingredientes ativos que foram proibidos em outros países ou que são extremamente tóxicos pra saúde humana ou contaminação ambiental.
Na União Europeia, alguns dos produtos hoje autorizados aqui foram proibidos devido à mortandade de abelhas. A morte de abelhas tem um enorme impacto para a saúde humana, porque em médio e longo prazo pode haver uma redução da biodiversidade. As abelhas são responsáveis pela polinização e a extinção delas pode implicar uma redução de produção de alimentos, inclusive, com prejuízos econômicos para a agricultura.
Um dos produtos que foi banido em vários países da União Europeia é o sulfoxaflor, justamente em função dos danos ambientais relacionados à mortandade de abelhas. Ele também foi banido nos Estados Unidos.
Mas para além da experiência de outros países, há produtos que tiveram registro concedido agora no Brasil e que são formulados usando ingredientes ativos de agrotóxicos que estão desde 2008 em processo de reavaliação aqui mesmo no país, em função da suspeita de vários danos para a saúde. Como é que um ingrediente ativo de agrotóxico está em reavaliação desde 2008, em função de riscos que são considerados proibitivos para efeito de registro de produtos, e a gente está liberando um produto formulado exatamente com esta substância? Parece uma inversão da lógica do princípio de precaução. É o caso do próprio glifosato. Existem vários estudos apontando uma série de efeitos negativos sobre a saúde, inclusive o caso de um jardineiro que está com câncer. Apenas essa suspeita já deveria ser suficiente para garantir a adoção de medidas precaucionárias.
É comum que as reavaliações dos produtos demorem, como neste caso, mais de dez anos para serem realizadas?
Quando há o reconhecimento por parte das empresas e pelos órgãos reguladores de que os riscos são considerados inaceitáveis, em vez de o produto ser retirado de imediato, são negociados prazos de muitos anos. Muitas vezes, para assegurar que os estoques daquele produto sejam vendidos… Para que eles acabem. Então, na medida em que há o reconhecimento dos riscos daquele produto, que há uma decisão regulatória no sentido de banir aquela molécula, muitas vezes é negociado um período de anos para retirada daquele produto. A ideia é assegurar que haja um maior lucro para aqueles que têm em seu estoque aquele produto. A regulação é entre atores sociais para fins econômicos e não para fins de precaução.
Até que ponto o princípio de proteção pauta hoje a discussão sobre agrotóxicos no Brasil? Para argumentar as liberações, a indústria, hoje, se pauta em alegações de que não há comprovação científica sobre os males causados por agrotóxicos, não há causalidade de doenças comprovadas…
Alguns elementos precisam ser considerados. O primeiro: é falho o argumento de que não existem evidências científicas de danos para a saúde humana ou para o ambiente. Agrotóxico, o nome já diz. Todo agrotóxico é tóxico. Ele pode ser muito tóxico ou pouco tóxico, mas não existe agrotóxico não tóxico. Os agrotóxicos são destinados a eliminar espécies e, muitas vezes, têm impacto sobre a saúde humana e contaminam o ambiente.
Com isso, quem tem que provar se o produto é inócuo para a saúde humana é o interessado em seu registro. Essa que deveria ser a lógica adotada, o princípio da precaução. Se não há certeza científica absoluta de que aquele produto não causa dano, ele não deveria ser utilizado. A gente não pode pagar para ver qual vai ser o dano e a dimensão deste dano.
O princípio precaucionário diz que as pessoas precisam ser protegidas, não expondo-as a essas substâncias. E não o contrário, de que baseado na incerteza científica as substâncias serão utilizadas até que se comprove que há um efeito extremamente severo.
A gente não pode torturar a ciência para que ela nos dê as respostas que atendam primeiramente aos interesses econômicos. O interesse primordial das políticas regulatórias deve ser proteger. Tem que promover a vida, tem que proteger a saúde das populações expostas, tem que proteger o ambiente assegurando a qualidade de vida para as gerações atuais e futuras. Então, o argumento da indústria jamais teria validade se houvesse uma lógica pautada na vida, acima dos interesses econômicos.
Há outros casos na história da saúde pública em que os interesses econômicos pautaram a liberação de substâncias e produtos, que, mais tarde, foram relacionados diretamente a doenças e outros males?
Além do tabaco, posso citar o caso do amianto. Durante muitas décadas houve uma discussão arrastada a respeito, mas hoje já existem evidências científicas suficientes que comprovam que o amianto é carcinogênico. A exposição a ele, inclusive, é a única causa reconhecida de mesotelioma, que é um câncer no pulmão, e o IARC – Agência Internacional de Pesquisa em Câncer – já classifica o amianto como substância carcinogênica.
No entanto, a indústria sempre buscou produzir evidências contrárias aos estudos científicos que apontavam a relação entre o amianto e o mesotelioma. E, no Brasil, ainda estamos debatendo uma possível liberação de um tipo de amianto menos perigoso que os outros. Logo, entende-se que as pressões do mercado muitas vezes se sobrepõem aos interesses de proteção da vida. Com a questão dos agrotóxicos não é diferente…
Qual o maior perigo da exploração do discurso de que porque não há comprovação científica não haveria risco?
Existem fartas evidências científicas de que a exposição aos agrotóxicos está relacionada a diversos efeitos negativos sobre a saúde, tanto agudos quanto crônicos. Isso já é dado, já é comprovado. O que acontece é que a indústria acaba tentando produzir outras informações para rebater esses estudos, mas nunca calcadas no princípio precaucionário. A lógica é: vamos expor até que se prove, sem dúvidas, de que a exposição a esse produto está relacionada a um determinado efeito, hoje considerado proibitivo pela nossa legislação. Inclusive, o PL 6299 busca flexibilizar a legislação vigente para que produtos que hoje são proibidos de serem registrados no Brasil possam ser autorizados.
Produtos que causam câncer são proibidos de serem registrados aqui no Brasil, assim como produtos que causam má-formação congênita, desregulação endócrina, mutagenicidade. Todos esses produtos são proibidos de serem registrados no Brasil no campo da política regulatória de agrotóxicos. E o PL do Veneno busca eliminar essa proibição, fazendo estudos de risco.
A gente não pode relativizar esses danos à saúde. Se existem evidências científicas muito fortes de que esses produtos estão associados a esses efeitos, a gente não pode esperar que uma criança nasça com má-formação congênita, ou que uma pessoa desenvolva câncer. Isso não pode acontecer.
Quais são as dificuldades e limitações científicas em provar que um produto causa câncer?
Para você trabalhar na perspectiva de classificar uma substância como carcinogênica para humanos, é preciso que existam estudos científicos que comprovem que essa substância é carcinogênica para mais de uma espécie de animal. Seria necessário, assim, ter pelo menos duas espécies com o câncer comprovado, e também evidências científicas de que essa substância causa câncer para o humano.
Só que existem várias limitações para conseguir comprovar que uma substância é carcinogênica para humanos, porque o câncer é uma doença que pode demorar muito tempo para surgir, e não se pode expor pessoas a substâncias buscando investigar se ela produz câncer ou não, evidentemente. Eu não posso pegar um grupo de pessoas e ir administrando periodicamente uma dose de veneno para ver se aquelas pessoas vão desenvolver câncer ou não.
Como não se pode fazer com pessoas o que se faz com animais em laboratório, você tem que se pautar em outros tipos de estudo, com outros desenhos. São os estudos de corte, por exemplo, que você faz com um segmento de um grupo de pessoas durante um período bem longo. Há estudos com vários outros delineamentos que são utilizados para evidenciar associação entre a exposição ao produto e um desfecho. A partir desse conjunto de evidências é que você classifica uma substância como provável carcinógena para humanos.
Há caminhos, ainda, para que o meio ambiente e a saúde do brasileiro não tenham seus destinos pautados apenas por interesses econômicos?
São várias estratégias que precisam ser fortalecidas para que a gente tenha mais saúde no Brasil. A gente precisa investir em políticas públicas que pautem a redução do uso de veneno. Neste sentido, a gente tem tramitando paralelamente ao PL 6299/02, do veneno, o PL 6670/16, que é a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos . Ela é extremamente importante e necessária para que a gente tenha uma redução da exposição aos agrotóxicos.
Também é preciso investir na redução de subsídios e isenções fiscais para empresas e processos produtivos perigosos para o ambiente e a saúde. Hoje, muitas indústrias são privilegiadas com subsídios. Então, o ônus é socializado, e o bônus fica centralizado nas mãos do grande empresariado.
A gente precisa fortalecer os investimentos em pesquisas científicas por instituições independentes, pesquisadores independentes, que não guardam conflitos de interesses. Como, por exemplo, os pesquisadores cujos estudos são financiados pelas empresas interessadas no registro. Existe um conflito de interesses muito grande nesses estudos científicos e, muitas vezes, eles são utilizados para adoção de políticas regulatórias. É muito grave!
O aparato regulatório não pode ser uma mercadoria monopolista de Estado, não é possível que você possa comprar e vender regulação. Assim como não existe ciência neutra, não existe regulação neutra. O que a gente tem que buscar são normas que protejam a população, que protejam as demandas do público, que protejam a sociedade. E não políticas regulatórias que flexibilizem as legislações, as normativas, com vistas à acumulação de capital: os interesses econômicos não podem se sobrepor aos interesses da vida, de proteção da vida.
Fonte: EPSJV/Fiocruz