Resenha | Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, de Rob Wallace

Idioma Portugués

A leitura do recém lançado “Pandemia e agronegócio” junta os fios de uma história ainda mal contada. Para o autor, as origens da atual pandemia de COVID-19, assim como diversas outras epidemias dos últimos anos, residem na globalização das práticas predatórias do agronegócio, mais especificamente na pecuária intensiva, hoje caracterizada por um verdadeiro sistema de produção de patógenos integrado à criação de porcos e galinhas. Ou seja, em cada celeiro do agronegócio deveríamos enxergar também uma fábrica de patógenos.

Estrategicamente posicionado na fronteira entre os estudos da Geografia e da Biologia Evolutiva, Wallace constrói cuidadosamente um percurso explicativo, percorrendo décadas de estudos sobre a dinâmica e evolutiva de vírus e bactérias na interface com os sistemas produtivos capitalistas. Em resumo, os efeitos colaterais do agronegócio abrangem a produção de reiteradas catástrofes ecológicas, que fazem com que epidemias e pandemias sejam cada vez mais comuns - e destrutivas.

Wallace remonta o surto de Ebola na África em 2013, quando diversos pesquisadores já alertavam para o avanço das plantações de palmeiras para a produção de óleo – um ingrediente essencial para a fabricação de alimentos industrializados - em direção às áreas florestais da Guiné e da Libéria. O desmatamento teria atraído populações de morcegos, repositórios naturais de diversos vírus, como o Ebola, em direção às plantações de palmeiras, aumentado assim a interface entre os trabalhadores rurais e os potenciais vetores de contágio da Ebola.

Por outro lado, a produção de novas periferias urbanas em interface com o ambiente rural teria garantido o provimento constante de um grupo de humanos suscetíveis. A partir destas condições, uma forte cadeia de transmissão ajudou a estabelecer a epidemia regional de Ebola. Contudo, o quadro geral do surto de Ebola se repete ao redor do planeta, em ritmo acelerado. A corrida do agronegócio por terras, por meio de grilagens, o chamado land grabbing, por pressões políticas internacionais ou através de arrendamentos a preços irrisórios, transforma a terra, antes de tudo em ativo financeiro.

Seguindo de perto o conceito de acumulação por despossessão de David Harvey - segundo o qual o capital expropria populações dos seus territórios para conseguir dar curso à sua acumulação (Harvey, 2003), Rob Wallace apresenta o agronegócio em sua relação expropriatória para com as populações, assim como em relação às práticas de cultivo agropecuário tradicionais. Ao mesmo tempo o agronegócio destrói também as áreas florestais, zonas úmidas e cursos de rios, eliminando assim, barreiras ecológicas para a dispersão de patógenos.

Utilizando o exemplo da Ebola da África como explicação arquetípica, o autor nos ajuda a compreender as dinâmicas por trás de outras epidemias, como o surto de gripe aviária (H5N1) em 2003, a gripe suína (H1N1) em 2009 e mesmo a atual pandemia de COVID-19.

Todas estas epidemias têm em comum o fato de surgirem nas fronteiras da expansão do agronegócio, que destrói sistemas florestais inteiros e aumenta a interface com vetores de transmissão, facilitando assim o chamado transbordamento (spillover) sobre populações humanas.

De acordo com Wallace, a pecuária intensiva cumpre hoje um papel crítico para a proliferação de diversos patógenos, como vírus e bactérias. Nos celeiros de criação de aves e porcos, esse micro-organismos estariam encontrando as melhores condições possíveis para o aprimoramento da sua virulência – a capacidade de infectar um hospedeiro – e para o aumento da sua patogenicidade – a sua capacidade de causar dano ao hospedeiro.

Um dos fatores mais problemáticos da pecuária industrial hoje está ligado ao sistema de monocultivo genético, que encerra a possibilidade de variação genética entre os animais, capaz de acumular uma resistência imunológica à vírus e bactérias. Hoje, cerca de 5 empresas de melhoramento genético controlam aproximadamente 80% das aves produzidas em todo o mundo, fornecendo frangos de corte, galinhas poedeiras, perus e outras aves, a partir de um banco genético unificado.

A baixa variabilidade genética entre os animais produzidos sob confinamento constitui um risco e uma aposta perigosa para a própria agroindústria. Os vírus, que estão em constante mutação, se mostram capazes de desvendar a biologia de aves e porcos e assim abrir caminho para uma infecção. Um novo rearranjo de vírus que tenha sido capaz de abrir caminho da infecção em animais produzidos sob o sistema de monocultivo genético, é capaz de contaminar celeiros, fazendas e regiões inteiras. O sistema é tão crítico que em muitos casos são realizados abates sacrificiais em massa para evitar que um surto incipiente se espalhe por uma região ou até pelo planeta inteiro.

Como o leitor brasileiro bem sabe, as grandes empresas do setor avícola são caracterizadas por sua integração produtiva, do melhoramento genético e da fertilização ao abate, à refrigeração e o transporte. Contudo, a etapa mais arriscada, tanto para a economia quanto para a saúde, é externalizada pelas empresas através do conhecido esquema de contratação de famílias de produtores rurais locais, amplamente disseminado pelo Brasil. Isso ocorre porque as grandes empresas há muito perceberam que a criação de tantas aves confinadas, geneticamente similares e imunologicamente deprimidas, envolve riscos permanentes de adoecimento e morte.

Wallace nos mostra como, as grandes empresas avícolas se relacionam com os produtores rurais pressupondo uma epidemiologia sempre em crise, e cortando fora os produtores que eventualmente sejam atingidos por doenças. Mesmo os investimentos em biotecnologia e biosegurança não parecem ser capazes de evitar a proliferação de epizootias nos próprios celeiros de abate ao redor do mundo. O caso do surto de H5N1 na China em 2009 é paradigmático, já que esta nova cepa do vírus da Influenza parece ter emergido, por meio de mutação genética, debaixo da campanha de vacinação em massa promovida pelo governo chinês.

Contudo, os vírus não se satisfazem infectando unicamente os animais da pecuária intensiva. Em meio às suas mutações constantes, um vírus que até determinado momento circulava unicamente entre aves ou porcos pode encontrar um caminho de infecção em seres humanos. Os primeiros alvos desse novo ciclo de contágio, semelhante ao transbordamento de vírus de morcegos para humanos, via de regra são os trabalhadores rurais que mantém um contato mais próximo com aves e porcos.

As práticas do agronegócio estariam criando condições que contribuem para o melhoramento dos patógenos. A globalização das cadeias de produção e consumo de alimentos industrializado, em conjunto com a circulação de pessoas, faz a sua parte para a concatenar as cadeias de transmissão na escala planetária. A destruição das áreas úmidas em todo o planeta oferece um efeito adicional sobre o circuito global de produção de novas doenças. As zonas úmidas, tais como pântanos, turfas e charcos, são naturalmente utilizadas como áreas de pousio e invernada por bandos de aves migratórias, que também são reservatórios naturais de diversas cepas de vírus. Contudo, dada a alta variabilidade genética dos bandos de aves selvagens, normalmente hospedam apenas vírus de baixa patogenicidade. Na medida em que a produção agrícola e pecuária avança sobre as zonas úmidas, drenadas para a formação de campos de cultivo, esses bandos de aves perdem as suas áreas de pousio e passar a forragear em meio às sobras das fazendas de grãos, cana-de-açúcar entre outras. Essa situação aumenta a interface entre aves migratórias selvagens e aves de criação. Quando os vírus das aves selvagens infectam um celeiro de aves de criação, encontram o caminho livre para ampliar a sua virulência e patogenicidade.

O pantanal brasileiro, uma das maiores planícies alagáveis do planeta, abrigando mais de 600 espécies de aves, sofre com a pressão da destruição ambiental do agronegócio, com seus campos drenados para criação de gado e produção soja, ao mesmo tempo em que se proliferam os celeiros da avicultura industrial por todo o país. Essa dinâmica, em conjunto com as queimadas da Amazônia, o aumento da grilagem e da pressão sobre reservas indígenas alcançaram um patamar catastrófico durante 2019 e início de 2020, sob o governo de Bolsonaro.

O argumento de Rob Wallace também é bastante crítico se voltado ao cenário brasileiro, uma vez que todas as condições econômicas e ambientais que deram origem a surtos de doenças na China ou nos EUA, podem ser encontradas de forma abundante no território brasileiro de forma abundante.

A transmissão do Zika vírus no Brasil entre 2015 e 2016 e que produziu uma taxa anômala de bebês com microcefalia em diversos unidades federativas, apesar de ter se apresentado como uma epidemia eminentemente urbana, tem as suas origens no desmatamento e no aumento da interface com os vetores rurais, que fez o seu curso através das periferias urbanas.
Além da versão integral do original “Big farms make big flu”, o livro “Pandemia e agronegócio” contém ainda dois artigos inéditos: “Sistemas de produção de alimentos globalizados, desigualdade estrutural e a Covid-19” e “Agronegócio, poder e doenças infecciosas”, que investigam as origens do Sars-Cov-2, o vírus por trás da pandemia de 2020, nos meandros dos circuitos regionais de criação de animais no sudeste da China, em interface com a pressão e a degradação ambiental.

Desde os anos 1990, a neoliberalização da economia do país transformou as paisagens agroecológicas da China de maneira radical. Tais transformações fazem dos arranjos produtivos globalizados, presentes em todo o sudeste chinês, um epicentro para a produção de novos patógenos. Um percurso que o Brasil imita a todo custo.

Enfim, a partir de um conjunto vasto de pesquisas, Wallace nos apresenta uma nova perspectiva para o entendimento sobre como as novas epidemias surgem a partir de suas geografias relacionais, conectando biomas e sistemas de produção agrícola e pecuário em todo o planeta.

Enquanto somos confrontados pela inépcia do governo brasileiro em oferecer uma resposta razoável para o combate à pandemia de COVID-19, a leitura deste livro pode nos oferecer uma perspectiva nova para encararmos com mais firmeza a epidemiologia do agronegócio na produção de novos surtos de doenças, no coração da sua catastrófica ecologia.

SILVA, Allan Rodrigo de Campos. Resenha: Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, de Rob Wallace. Revista NERA, v. 23, n. 55, p. 427-431, set.-dez., 2020.

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Fonte: Revista NERA

Temas: Agronegocio, Salud

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